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A GAROTA ADAMANTE (2024) Dir. P.S. Vinothraj


Texto por Marco Fialho

Quem está acostumado a assistir os filmes indianos vindos da chamada Bollywood, com certeza vai estranhar A Garota Adamante, um drama que nada tem a ver com os musicais cafonas e as correrias dos roteiros que chegam por aqui cheios de dramas românticos cantados e muita correria. O filme dirigido pelo jovem diretor P.S.Vinothraj segue caminhos narrativos bastante diferentes, sem as pirotecnias técnicas e de efeitos visuais tão afeitos ao cinema indiano que normalmente é exibido no Brasil.

A Garota Adamante trata de um tema bem pontual e procura o aprofundar nos seus 90 minutos, o de uma menina que decide não casar mais com o noivo, porque se apaixonou por outro homem, que além de tudo, ainda pertencia a outra casta. Enquanto o noivo foi trabalhar para poder juntar dinheiro para efetivar o casamento, a noiva foi fazer faculdade, justamente o local onde o novo amor floresceu. 

Entretanto, o filme de P.S.Vinothraj vai muito além dessa história, pois atinge numa região nevrálgica do sistema social indiano, o da violência contra a mulher e mostra o quanto esse sistema não está preocupado com a liberdade delas, mas de mantê-las amarradas aos contratos efetuados pela famílias. O filme denuncia que as mulheres indianas saem das saias da família para as do marido, o mantem a sua submissão dos seus corpos sempre a um homem, seja o pai ou o marido.

P.S.Vinothraj escolhe narrar o filme sob uma ótica bem interessante, a do road movie. A história se desenvolve quase toda na estrada, com o riquixá motorizado e duas motos, que levam as duas famílias do interior envolvidas no futuro casamento, que decidem visitar um vidente para exorcizar um possível demônio que se apossou da jovem. Com um bom road movie que se preza, A Garota Adamante revela os personagens durante o percurso. A jovem, assim como outras mulheres, é agredida pelo noivo, quando esse descobre que a noiva está cantando uma música e que sua mudez é um ardil cômodo.

A Garota Adamante extrai ideias interessantes com sua forma fílmica, já que enquanto todos estão em movimento rumo ao vidente, o diretor mostra incessantemente a imobilidade e a inflexibilidade da noiva. A câmera sabe extrair muito do olhar da noiva os detalhes mais importantes da história, o que contrasta com a agitação sempre máscula e autoritária do noivo. Ainda no caminho, os homens discutem suas aflições e métodos de educação, assim como as mulheres no riquixá fazem o mesmo entre elas. A viagem então propicia que todos conversem sobre as tradições, virgindade e dinvidade estão presentes e são pautadas por todos. Um touro parado no meio da estrada sinaliza um sinal de azar. 

O formato road movie cria uma expectativa crescente no espectador, já que o longo caminho até o vidente, só agrava as tensões entre o noivo e a noiva, e os obstáculo da estrada revelam um pouco do próprio dinamismo da vida, os obstáculos que estão à frente e a imprevisibilidade permanente do futuro. A Garota Adamante acerta quando sabe construir uma narrativa assentada numa câmera atenta aos silêncios da noiva e na revelação do ato rebelde de mulheres que não aceitam mais a opressão dos seus corpos pelas famílias e maridos. 

A câmera final sob a perspectiva do noivo, mostra a perplexidade, a descrença e a adoção do silêncio como um simbolismo da derrota de uma masculinidade tóxica e frágil. É o cinema poderosamente nos indagando com a sua perplexidade. P.S.Vinothraj não nos deixa conhecer qual é exatamente o final da história e isso faz sentido porque a função do road movie é indagar o mundo sobre as suas certezas, e aqui, porque não, sobre a fragilidade dos sistemas de opressão quando alguém resolve assumir às rédeas  da sua própria história.        

    

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