Texto por Marco Fialho
Toda premissa extrema recebe avaliações no mesmo patamar. Esse vem sendo o caso de A Substância, filme dirigido pela francesa Coralie Fargeat. Os efeitos são de uma medida única, ou a sublinhar o sucesso de sua ousadia ou a dizer o quanto frustrante ela é. Esse é, em geral, o problema que esse tipo de cinema evoca: o tudo ou o nada. Não vejo A Substância nem tanto ao mar nem tanto à terra. Entretanto, para mim, esse é um samba de uma nota só, que estabelece sua proposta desde a primeira cena e briga com ela até o seu último suspiro. Sua maior qualidade, assim como a sua ruína.
Substância, inclusive, é um perfeito exemplar do subgênero do terror conhecido por body horror, especializado em se debruçar nas temáticas que envolvem corpo e produtividade no sistema capitalista. Antes de A Substância, as obras mais discutidas dentro dessa proposta estética tinha sido o premiado Titane (2021), de Julia Ducournau e Crimes do Futuro (2022), de David Cronenberg. Nota-se o quanto esses filmes tem em comum, além do tema, a própria polêmica, sendo então obras afeitas ao cerne de nosso tempo presente, pois a polêmica, em última instância, vende. Mas vale registrar que a versão francesa do body horror se relaciona diretamente com um cinema feito por diretoras, quase sempre inclinadas na discussão dentro de um campo de pensamento feminista, ao investigarem o uso do corpo da mulher, mais especialmente, dentro da lógica capitalista.
Por isso, o mote propulsor da história e discussões de A Substância só poderia ser o corpo de Elisabeth Sparkle (uma Demi Moore impecável), uma ex-estrela de Hollywood na meia idade que tem um programa de ginástica na TV, no qual o produtor Harvey (um Dennis Quaid numa interpretação muito histriônica e caricatural) pretende substituí-la por uma mulher mais jovem, o que a leva ao desespero e a experimentar uma substância que pode ajudá-la a recuperar o corpo jovem, pelo menos assim ela é vendida na campanha publicitária.
A diretora Coralie Fargeat faz um mergulho na alma de Elisabeth, na sua pretensão de ainda continuar a ser um corpo jovem, que precisa moldá-lo ao desejo de uma sociedade que exige um padrão de beleza em que a juventude é o carro-chefe da identificação e venda de uma imagem. Não casualmente, o espelho está presente em muitas das cenas. As marcas da idade são um problema para o sistema que quer vender ao público um modelo de beleza jovem, sem marcas na face e no restante do corpo.
Mas como a diretora encara cinematograficamente essa proposta? Eu diria que a ideia de Coralie Fargeat é reativa, uma busca por retratar o tema por meio do choque imagético e sonoro, e porque não dizer sensorial. Por isso, A Substância é uma obra à flor da pele, que escolhe narrar pelo exagero ao extremar as situações até levá-las ao choque. Muitas cenas me remeteram ao cinema dos anos 1920, em especial o impressionista e o expressionista, por ambos trabalharem e buscarem com a distorção da imagem. A ideia de desfoque e vertigem, muito me evocou o cinema de Abel Gance (A Roda - 1923) e o aspecto gráfico de representação do monstruoso e sua relação com a sociedade a vários filmes expressionista (lembrando ainda o quanto esses filmes gostavam de penetrar nas feiras populares, da exposição do grotesco, como acontece em O Homem que Ri - 1928, direção de Paul Leni). Essas influências são, portanto, ocasionais, notadas em alguns momentos bem significativos dentro da trama e se dirige especialmente à percepção que a personagem faz de si mesmo.
Mais do que pensar no grotesco, no escatológico e no trash, creio que seja importante em refletir como esses elementos formais aparecem e conformam a proposta de Coralie Fargeat. Como é comum em filmes dessa natureza, a sutileza desaparece por completo do mundo e o que vemos é a monstruosidade assumindo a própria narrativa. Como a personagem se divide em duas, Elisabeth e Sue (Margareth Qualley), chega a um ponto em que não sabemos a quem chamar de monstro, afinal ambas formam um complexo e único indivíduo a mercê do mercado e seus padrões.
Contudo, é nesse viés que o filme mais fraqueja ao meu ver. O enfoque recai em cima de uma atriz fisicamente decadente (sim, o envelhecimento faz parte da natureza humana) que não quer abrir mão de um determinado lugar para ocupar outro, o que não seria em si o maior problema, afinal o passar do tempo promove mudanças em todos os seres humanos. Mas A Substância em sua obsessão na personagem, encobre outras questões mais complexas, ao abraçar radicalmente uma ideia de etarismo. Porque não se questionar a compulsão pela perfeição existente nos corpos considerados perfeitos e belos pela sociedade, esta sim uma doença dos nossos tempos. O que dizer da busca desesperada e fútil de um rosto padronizado por harmonizações que retiram dos rostos o que eles tem de particular e único, para flertar com a ideia insana de corpo-máquina, que nos últimos anos se proliferou para muito além do universo ficcional. Artistas, modelos, apresentadoras e influencers se jogaram nesses procedimentos em que preenchimentos, afilamento de narizes, entre outras formas de deformação física que cada vez mais padronizam os rostos. Não se pode, portanto, restringir a discussão pela idade dessas pacientes, já que diversas delas são muito jovens.
A perda da juventude, para qualquer efeito pensável, faz parte da natureza humana desde sempre, embora no mundo ditado pela imagem, e vivemos sob os auspícios das múltiplas telas, esse fenômeno tanto se amplia quanto se amplifica. A Substância me parece se envenenar do seu próprio veneno ao individualizar por demais a matriz de sua história. Tornar tudo que envolve estruturalmente o tema da perfeição como subalterno e atribuir tudo na própria personagem creio ser um aspecto que empobrece o filme. Assim como a preocupação excessiva no formal leva a história para um segundo plano e a engessa. Ficamos sempre esperando o próximo golpe estético da diretora, antes mesmo de nos preocupar com o que vai efetivamente acontecer na história.
Inicialmente achei sensacional as metáforas da calçada da fama, com Elisabeth representada tanto pela impressão de seu nome na calçada quanto pelo seu apagamento no decorrer dos anos. Uma bela síntese cinematográfica sobre a fama e seus percalços previsíveis e quase sempre inevitáveis. E voltar no final ao mesmo enfoque foi uma decisão interessante da direção. Pena que tudo que está colocado no meio tire o impacto simbólico por ser tão explícito e com uma pretensão absurda de chocar. Coralie Fargeat tenta juntar duas narrativas inconciliáveis de uma vez: a da escatologia explícita com a simbólica e o resultado é que as duas se esvaziam quando confrontadas. Contudo, apesar de parecer tão ousado, A Substância foge sempre do embate principal, o de saber quem manipula as cordinhas da venda desses produtos milagrosos chamados de the substance. Me lembrei do final de Retratos Fantasmas, filme do Kleber Mendonça Filho, quando ele passeia de táxi pelas ruas de Recife e registra com a sua câmera dezenas de farmácias, uma após a outra, numa sucessão de imagens que dizem mais do mil palavras sobre o nosso doente mundo. A Substância produz tantas imagens, e muitas delas impactantes, mas quase nenhuma vai no xis do problema, sequer sabemos quem são os donos da fantasiosa indústria que se alimenta de egos feridos pela lógica do sistema.
O prenúncio de sua decadência física é sugestionada logo no início do filme, quando ela ao volante, não vê o semáforo ao olhar para um outdoor com sua imagem sendo rasgada no rosto para substituição por outra. Apesar do impacto do carro, a violência da batida não resulta em ferimentos, mas é lá, no hospital, que ela tem contato pela primeira vez com a informação da substância milagrosa. Ao tomar a substância o corpo reage como se a juventude ainda estivesse ali guardada no seu corpo, e tudo acontece como um renascimento, mas o produto repete: o corpo são dois, mas a alma é uma só e as regras para manter a juventude é rígida e não pode ser contrariada. A sua nova face se chama Sue e o mais bizarro é essa nova ela a substituir no programa. E mais estranho são os closes de bunda, essa repetição fetichista que representa a visão obsessiva masculina pelo corpo da mulher.
Na tentativa de se manter mais tempo jovem, Sue não segue as regras e vai decretando a decrepitude do corpo velho. Essa parte do roteiro é bastante forçada, pois a manutenção da juventude vai distorcendo o corpo de Elisabeth. O som de A Substância vai acompanhando a sua forma extremada. Tudo o que ouvimos é aumentado, tem eco, é distorcido e angustiante. Os letreiros que aparecem na tela são gigantes, sufocam por meio da visão. De repente vemos com letras garrafais: MONSTRO ELISASUE. A unidade dos corpos se anuncia, porém ela chega e Coralie Fargeat incorpora trechos famosos de Vertigo (Alfred Hitchcock,1958), que também discute a transformação do corpo de uma mulher e sua idealização por um homem. A diretora não satisfeita em citar a música de Bernard Herrmann, ainda cita a famosa música de Richard Strauss, utilizada por Stanley Kubrick em 2001, Uma Odisseia no Espaço (1968), que marca um momento de grande transformação para a humanidade. Óbvio, que essa não são citações gratuitas, mas propositais para frisar o pensamento da diretora sobre o seu espectro temático.
O que dizer da câmera-protagonista de A Substância, de sua inquietude e vontade de performar junto com os personagens. A câmera vai de um lado para o outro, agita-se e persegue. Em determinada hora, Harvey vem ao encontro dela até o seu rosto deformar, numa cena de violência contra ela e contra nós, que estamos como voyeur da cena também somos agredidos. Em um mundo midiático a câmera atua como um celular a registrar as ações cotidianas. A câmera age como se buscasse registrar a violência, como se ansiasse por ela. A câmera pode ser vista ainda como um objeto violentado em A Substância. Ela está no jogo, prestes a ser violenta e violentada em uma mesma perspectiva. Como todos nós nesse mundo, prestes a abater e ser abatido, em que os papéis não estão definidos a priori.
Isso me faz pensar mais sobre A Substância e a sua capacidade de chocar as plateias, mas sobretudo como Coralie Fargeat constrói essa ideia do choque. Creio que a resposta da diretora seja pela evidência gráfica. Assim como os filmes pornôs mostram o sexo explícito performado, aqui acontece o mesmo pelo prisma do horror. O horror é uma forma de espetacularização, onde o pastiche encontra o trash, e através dele, performa para o mundo. O sangue espirra com tanto vigor que atinge a plateia da grande festa midiática, a transformando em um show de horrores, mas ele é tão transbordante que chega na plateia. A Substância deveria ser aqueles filmes em 4D, em que o espectador sai retinto pelo vermelho que poderia sair pelo braço que possui aquele recipiente onde se coloca o refrigerante. Essa é a sua intenção maior, sair da tela e enojar a todos que pagaram o filme-produto.
Quando um filme como A Substância me chega, a minha vontade é a de gritar que eu prefiro filmes que exploram a sutileza como estratégia de abordagem artística, mas quando eu grito isso, logo percebo que A Substância já contaminou até o meu sentido de sutileza por me fazer gritar. A impessoalidade agressiva desse nosso mundo está no filme, e acho que na altura do campeonato, também já está naturalizada em cada um de nós. Eu repudio A Substância e todas as suas camadas trash de representação do mundo com todas as minhas forças, preferindo ficar com a inexistente sutileza de um mundo cinematográfico que eu sonhei utopicamente para mim, muito embora nem sempre a espetacularização do choque seja um problema em si.
Que resenha complexa e cheia de matizes. Li agora e fiquei feliz por compartilharmos várias impressões sobre o filme.
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