Texto por Marco Fialho
Sidonie no Japão, dirigido por Élise Girard, é um filme insólito dentro do atual mercado exibidor brasileiro, não à toa estreou quase que proforma, passando desapercebido tanto pela crítica quanto pelo público. Aqui no Rio de Janeiro está programado apenas para uma única e isolada sessão, nem a presença da atriz Isabelle Huppert fez a obra ser melhor divulgada. Uma injustiça pelo que o filme propõe como experiência cinematográfica.
Porém, a diretora Élisa Girard realiza uma obra de imensa sensibilidade e bastante atenta aos detalhes que cada cena proporciona. É desses filmes cuidadosos, calcado em imagens precisas, com planos em sua maioria fixos e músicas que variam sempre a partir de um tema único. Bach e Sakamoto predominam na maior parte do filme. A dupla de atores protagonistas (Isabelle Huppert e Tsuyoshi Ihara) é exemplar e demonstram uma sintonia impressionante.
Há uma nítida homenagem de Élise Girard a um certo cinema contemporâneo japonês. Dá para sentir a presença de Ozu (os enquadramentos flertam com ele), Mizoguchi (em especial o seu apego às personagens femininas), mas sobretudo, ecos de Naomi Kawase, uma cineasta que ama os dramas sensíveis e as epifanias. Sidonie no Japão é um cinema francês que reverencia, com boas doses de amor, o cinema japonês e por isso a escolha de Isabelle Huppert faz todo o sentido, bom lembrar o quanto ela já flertou com o cinema do coreano Hong Sang-Soo e está sempre aberta a viver esse tipo de experiência no cinema, interagindo com culturas bastante diferentes da sua. Como é bom ver Huppert se reencontrando com papéis desafiadores, enigmáticos e profundos.
No decorrer do filme, me lembrei ainda de Hiroshima Mon Amour (1959), clássico de Alain Resnais, que narra uma relação entre uma francesa (Emmanuelle Riva) e um japonês (Eiji Okada) no Japão. Em Sidonie no Japão, o encontro amoroso se repete, embora nessa obra de 2024 não haja uma guerra para mediar a relação. Agora, Sidonie é uma escritora que aceita o convite do seu editor japonês para lançar o seu primeiro livro em terras japonesas. Evidente que as diferenças culturais estão conduzir a relação entre os dois, o que confere uma certa dose de humor à história.
A primeira grande curiosidade que nos defrontamos é o nome do editor japonês, Kenzo Mizoguchi, homônimo do grande diretor de cinema daquele país. Entre a timidez de Sidonie e as poucas palavras do editor, resta os gestos, os olhares e os costumes destoantes das duas culturas em jogo. Outra curiosidade está no fato da história o tempo todo se passar ou dentro de hotéis, livrarias ou meios de transportes (carro, navio, trem e avião). Há um aprisionamento constante de Sidonie, que mal consegue dar passos de acordo com seus desejos por está constantemente sob os auspícios de Kenzo.
As cenas reincidentes dos dois personagens indo e vindo no carro, cujo motorista nunca vemos, são as mais cruciais para a narrativa proposta por Élise Girard, pois nesse minúsculo ambiente é que a relação íntima deles mais se estabelece e se concretiza. Se nas primeiras cenas eles estão distantes, a cada nova cena a aproximação é visível, assim como os corpos e mãos que lentamente vão se encostando. Há um significativo diálogo entre eles que demarca bastante as diferenças culturais, quando ela diz que quer fazer amor com ele. Kenzo retruca com precisão: "aqui não dizemos isso, apenas fazemos." O intrigante é como o carro é pensado como um espaço entre o público e o privado, pois mesmo que ambos ainda estejam sob olhares alheios, ali conseguem uma forma de se estabelecer um diálogo aproximativo.
Conhecemos alguns fatos da vida de Sidonie quando a mesma concede entrevistas a jornalistas japoneses. Nessas ocasiões, ela fala da morte trágica dos pais e do irmão em um acidente de carro. E depois de outro acidente no qual perdeu o marido, apesar dela sair com o corpo intacto dessa colisão. Mas o Japão, segundo Kenzo, é um país em que os mortos convivem lado a lado com os vivos, pelo menos é essa a resposta que ele dá a Sidonie quando ela afirma estar vendo o marido em seu quarto de hotel. É pelo menos dessa maneira que a diretora Élise Girard situa a sua história, em um terreno onde o fantasmagórico passeia na trama sem grande arroubos dramatúrgicos.
Élise Girard introduz à narrativa de Sidonie no Japão momentos muitos poéticos, seja na maneira contemplativa na qual pensa os enquadramentos em si seja na própria construção da mise-en-scène como um todo. A sensibilidade explode quando assistimos a um sonho de Sidonie em que o marido Antoine (Gustav Diehl) a encontra quase que levitando por entre as flores de um pé de cerejeira e eles se beijam e a imagem dele se metamorfoseia na de Kenzo, como uma autorização para que ela concretizasse o desejo pelo editor japonês. Esse talvez seja o momento mais pictórico e intenso, talvez o único, a que Élise Girard se permite no filme.
O que seria o momento mais esperado, o do sexo entre eles, Élise Girard propõe uma encenação inesperada e nada convencional. Enquanto vemos fotos deles nus na cama, jamais com imagens explícitas, apenas algumas sugestivas e insinuantes, ouvimos ambos conversarem sobre as qualidades do outro. Essas construções poéticas mostram uma sensibilidade incomum da diretora no pensar a mise-en-scène de Sidonie no Japão.
A singeleza das cenas e o distanciamento imperativo da câmera, constroem um universo próprio daquelas subjetividades e fazem com que pensemos sobre os percalços que as vivências do passado estão em nós e como a imprevisibilidade da vida pode nos agraciar com pequenos e inesquecíveis momentos de felicidade. A delicadeza que tanto anda nos escapando, aqui toma uma forma que chega ser dilacerante, mesmo que haja sempre um rumor de humor perpassando a maioria das cenas.
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