Texto por Marco Fialho
O cinema brasileiro vem surpreendendo pela sua capacidade de revelar cineastas que vem do interior do país. Saudade Fez Morada Aqui Dentro traz Haroldo Borges, um artista do interior da Bahia, para narrar uma história tocante e sensível sobre um menino que possui uma rara doença degenerativa que afeta a sua visão. O filme é todo construído pelo ponto de vista de Bruno (Bruno Jefferson), um menino revoltado com o destino que a vida lhe deu.
Saudade Fez Morada Aqui Dentro foi filmado em Curaçá, uma cidade pequena do interior da Bahia, com elenco jovem constituído de atores do local, que não eram profissionais da representação. O diretor contou com a colaboração da premiada e reconhecida preparadora de elenco Fátima Toledo (Cidade de Deus), que ensaiou e acompanhou a filmagem do filme. É visível o esforço da preparadora para construir uma ideia realista na encenação (um flerte àquela do neorrealismo italiano em meados da década de 1940), que preservou a essência desses atores, com suas gírias próprias que são mantidas, assim como os sotaques.
Saudade Fez Morada Aqui Dentro é também um filme sobre o Brasil, um país despreparado estruturalmente para encarar as alteridades. Ao saber do problema de Bruno, a escola quer rechaçá-lo, colocá-lo numa escola exclusiva que vai isolá-lo do restante do mundo. Sorte teve Bruno ao ter um professor recém egresso de Salvador, com formação para ajudá-lo e acolhe-lo, o que é algo bastante raro de acontecer.
O principal conflito de Bruno é com ele mesmo, o da aceitação à situação de cegueira inevitável que terá que enfrentar e isso faz dele um menino difícil de relacionamento. O roteiro, do próprio Haroldo Borges, consegue trabalhar bem as nuances comportamentais dos personagens, e guardar uns pontos de vistas que a princípio enganam o espectador, como o da relação entre Angela (Angela Maria) e Terena (Terena França), que promovem o inesperado nas nossas visões sobre as relações entre o trio principal.
O melhor de Saudade Fez Morada Aqui Dentro está no sentimento de Bruno, da saudade premeditada de saber que sentirá saudade de tudo que um dia viu, desde a beleza das meninas até as coisas do mundo. A desorientação visual dele é comovente e mais ainda quando pensamos na conversa inicial entre ele e o irmão Ronnaldy (Ronnaldy Gomes) sobre suas habilidades e aquela saudável disputa no que eu sou melhor do que você, que quase todos os irmãos fazem. Numa sociedade que cobra macheza do homem, vemos Bruno tendo que se fragilizar a partir de seu duro diagnóstico da visão.
O filme também é sobre a necessidade de construção de uma rede de acolhimento. E isso se faz lentamente, como o caso de Angela que irritada com ele, o abandona em um lugar cheio de pedras, níveis e desníveis. A vida muda para Bruno, mas igualmente para quem convive com ele, pois o processo de adaptação é mais amplo do que se imagina a princípio. E o que fazer quando você ama desenhar, e o faz muito bem, e de repente fica sem visão? São as agruras que a vida periodicamente pode nos reservar.
Embora o roteiro do filme seja fascinante e muito bem amarrado, preciso confessar o quanto a câmera de Saudade Fez Morada Aqui Dentro me incomodou, e muito. A opção de colocar a câmera na mão em todas as cenas não funciona por motivos óbvios, sobretudo porque as cenas possuem motivações diferentes. Se o diretor almejou mostrar a instabilidade, criou para mim uma unicidade de tom no plano imagético que não ficou nada interessante, e que inclusive destrói as diversas possibilidades de vivência do personagem. O filme tem seus momentos de severidade e angústia, porém também preserva instantes de introspecção, que pede uma câmera estática ou com uma suavidade no movimento. A câmera na mão ela tem o poder de atrair o público para o aparelho e para quem o conduz, por isso esse uso é muito específico e empobrece a proposta em vários momentos.
A pergunta que pode ser feita agora pelo leitor é se essa crítica à câmera tiraria a importância de Saudade Fez Morada Aqui Dentro? Creio que não, o cinema é uma arte complexa e com muitas nuances e uma análise não tem como objetivo acabar com o filme, apenas fazer uma leitura dele. Essa é uma obra que as qualidades gritam mais do que os seus problemas. Ao trazer um Brasil profundo para as telas, o filme adquire um sentido único e até desbravador, afinal, discutir sobre cegueira no Brasil é sempre fundamental.
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