Pular para o conteúdo principal

QUANDO EU ME ENCONTRAR (2023) Dir. Amanda Pontes e Michelline Helena


Texto por Marco Fialho

Quando Eu Me Encontrar é um filme que fala sobre corpos em movimento, sobre a ousadia ou coragem de mudar o destino. Não casualmente as primeiras cenas descrevem a rotina de seus protagonistas em seus empregos, que revelam o contraste deles com a personagem Dayana, cujo rosto nunca aparece, mas que movimenta todos os outros personagens. Essa é uma faceta interessante construída pelas roteiristas e diretoras Amanda Pontes e Michelline Helena em seu primeiro longa, a de confrontar o eterno conflito entre ficar e partir, além de trabalhar o drama de quem fica. A história transcorre em Fortaleza (CE), numa região próxima ao Centro. 

A trama se articula a partir de uma ausência, a de Dayana, que abandona inesperadamente a casa, apenas deixando um bilhete, o que abala a vida de todos a sua volta: a mãe Marluce (a sempre ótima Luciana Souza), a irmã adolescente Mariana (Pipa) e o noivo Antonio (David Santos). As diretoras narram a vida desses três personagens a partir da partida de Dayana, descrevendo as angústias, desesperos e expectativas de cada um. A música introspectiva do sambista carioca Candeia, Preciso Me Encontrar, que teve várias regravações inclusive com Cartola e Marisa Monte, dá o tom melancólico presente no filme. Ela diz:

"Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer,
Ver as águas dos rios correr,
Ouvir os pássaros cantar,
Eu quero nascer, quero viver"

O filme começa com Dayana e umas amigas cantando a canção, já bem bêbadas, no clima de final de noite, em uma praia, porém não vemos ela nem as amigas que dividem com ela o canto atropelado e desleixado da canção. "Vou por aí a procurar". Mas é necessário dizer ainda, que Candeia termina o verso dizendo: "Eu quero nascer, quero viver", como uma forma de renascimento em vida. Creio ser esse o maior impacto de Quando Eu Me Encontrar, embora o que vejamos é o efeito desse ato nos que ficaram.

Antonio é o que mais deixa transparecer o incômodo pela partida de Dayana. Em um dos poucos momentos de flashback de Quando Eu Me Encontrar (mesmo que o passado venha somente pelo áudio, porque a imagem é do presente), Antonio lembra de Dayana em uma certa noite o convidando a se atirar corajosamente da ponte. Enquanto o áudio o lembra de Dayana pulando, Antonio está no presente pensando em se atirar, mas se ele não o fez no passado, agora o que a cena mostra são os seus limites, de que não é de sua índole se colocar em risco. Essa cena mostra Antonio como alguém que não tem o movimento como sua principal marca, o que o afasta radicalmente da impetuosidade de Dayana.

Marluce, a mãe, é uma dessas mulheres batalhadoras, que concilia dois empregos para manter as filhas, cujo pai é ausente como em tantas famílias brasileiras. Ela sabe que seu passado, presente e futuro estão presos a Fortaleza, de que a vida é o trabalho e o sustento dela e das filhas. Já Mariana, a filha caçula, vive os dilemas da juventude, as incertezas e as belezas desse universo. 

Contudo, ainda tem a personagem Cecília (Di Ferreira), uma cantora da noite e melhor amiga de Dayana. Tanto Mariana quanto Antonio a procuram com a esperança de encontrar alguma pista sobre o paradeiro da "fugitiva". A montagem de Mariana Nunes Gomes talvez seja um elemento fundamental de Quando Eu Me Encontrar por organizar todas as histórias paralelas com muito êxito e equilíbrio, sem deixar que nenhuma delas se sobressaia sobre as outras. 

E Cecília funciona bem como uma personagem que não só pelas conversas, mas também, e especialmente pelas músicas, comunica mais do que mil conversas as situações. E sua participação na trama sempre está posta no momento exato para alimentar tanto as cenas anteriores quanto posteriores dos protagonistas, criando um diálogo fundamental e espontâneo no fluxo narrativo do filme. A inserção musical que mais gosto é a que Antonio vai ao show de Cecília e ouve ela cantar "Trocando em Miúdos", de Chico Buarque. Há uma interação incrível entre Antonio, Cecília, aliança e a letra forte da música. Uma das cenas mais impactantes do cinema brasileiro recente, de grande força dramática. Simples e bela.

Quando Eu Me Encontrar é, sem dúvida, uma estreia de peso da dupla Amanda Pontes e Micheline Helena, com um domínio preciso de um cinema com uma narrativa contemporânea, que sabe se valer dos silêncios, das cenas do cotidiano e da contemplação dos personagens. Um filme que sabe dosar poesia imagética com uma narrativa descritiva, sem esquecer de deixar pistas para manter o interesse do público. Uma bela demonstração de maturidade para um longa de estreia.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...