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PASÁRGADA (2024) Dir. Dira Paes


Texto por Marco Fialho

Pasárgada marca a estreia de Dira Paes como diretora de cinema. O filme tem altos e baixos, em especial na montagem, que não consegue manter uma concepção rítmica que nos prenda integralmente à trama. O primeiro esforço realizado por Dira logo nas primeiras imagens é o de nos arremessar na paisagem da floresta, com seus pássaros, rios, que inspiram uma atmosfera de paz e calmaria. Esse passo é importante porque ele tem um duplo efeito, um no espectador, que é mergulhado nesse ambiente, e outro na própria protagonista, que usufrui de uma experiência imersiva nessa floresta, algo que vai ser determinante para os passos e decisões que ela precisará tomar no decorrer da narrativa.      

A história do filme gira em torno de Irene (Dira Paes), uma ornitóloga introspectiva que viaja por florestas brasileiras inóspitas com a missão de descobrir espécies raras para trafica-las. Ela participa de uma rede internacional que dá certificados e desonestamente colabora para legalizar o comércio e o trânsito dessas aves. Algo que paira duvidoso é que desde logo percebemos que Irene faz conscientemente esse serviço, traindo os princípios de um profissional que estuda espécies para protegê-las, não para aniquilar com elas. Sinceramente, não consigo entender as duas posturas que a personagem toma no decorrer do filme, nem a primeira quando estuda para não proteger as espécies, nem quando depois se arvora em querer defender as espécies. Creio que quem faz esse tipo de desserviço não volta atrás com tanta facilidade, porque esse é o seu meio de sobrevivência financeira.                              

Durante a projeção, às vezes fiquei com a impressão de que a diretora se aproveita da relação da personagem com a natureza para forçar e alargar as margens temporais de algumas cenas, o que transparece um tipo de fetiche com a natureza, muito embora essa postura provoque mais um sentimento de monotonia à narrativa do que o tal clima de organicidade à natureza pretendida. O personagem Manoel, vivido por Humberto Carrão, representa um problema na história, por não conseguir convencer a ninguém que é um mateiro, especialmente devido aos seus evidentes trejeitos urbanos que apresenta e fora a considerável distância de caracterização entre ele e o personagem de Ciça, que a princípio seria o mateiro a acompanhar Irene em sua jornada de descoberta dos pássaros da floresta.    

Entretanto, vale ressaltar em Pasárgada a presença e o protagonismo de Dira Paes como atriz. Vê-la em cena é sempre um grande prazer, por ela emanar a habitual luz tão rara de se ver no cinema, além de um domínio interpretativo sempre impressionante em cada cena. Claro que há uma busca de Dira numa outra direção, no intuito de agora dominar um espectro mais amplo do trabalho em cinema, como é o trabalho da direção de um filme. A direção não é uma tarefa fácil e creio que essa experiência deve ter deixado isso marcado para a atriz. O caminho traçado por Dira Paes para este filme é o do desafio, pois Pasárgada não é um projeto para ocupar centenas de salas, pelo contrário, é uma tentativa de se produzir um filme mais autoral e introspectivo.         

Contudo fiquei pensado no arco dramático da personagem Irene, sobre a mudança de rumo sofrido por ela, que, de uma cientista vendida ao sistema resolve demonstrar apego à natureza, se arrependendo de seus atos devido uma morte não esperada por ela durante o percurso de sua aventura, que convenhamos não é tão alheia assim ao seu trabalho de ajudar a provocar um desequilíbrio ambiental. Fiquei a imaginar acerca dessa transformação, dessa mudança de atitude frente à ambição financeira que acaba levando pessoas a aceitarem determinadas funções ligadas à destruição do planeta. Seria possível mesmo uma pessoa que faz tráfico de pássaros ficar com a consciência pesada e resolver denunciar o esquema na qual ela mesma é uma das beneficiárias? Não seria um caminho mais coerente se descobrir o esquema por meio de uma fiscalização oficial, pois é assim que teria que ser, pelas vias legais? Esse papo de conscientizar o bandido me lembra mais aquelas soluções hollywoodianas, em que do nada, os personagens resolvem fazer o bem. Haja magia, né?         

Dira Paes demonstra uma inconsistência no controle narrativo do filme e isso vai ficando evidente no desenvolvimento dos personagens, como no desaparecimento injustificável e repentino de Manoel da trama. De uma narrativa contemplativa avançamos para movimentos de causa e efeitos muito demarcados, para ao final termos uma retomada para o universo mais simbólico. São oscilações tanto narrativas quanto dramáticas que engessam o filme e que não permitem que Pasárgada tenha uma fruição mais a contento.  

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