Texto por Marco Fialho
Quem acompanha o blog Carmattos, https://carmattos.com/, além de usufruir do prolífico trabalho de Carlos Alberto Mattos como crítico de cinema, pode conhecer também a sua paixão pelas paisagens, muitas vezes registradas tanto em vídeo quanto em fotografia das viagens pitorescas que ele e sua esposa Rosane Nicolau fazem mundo afora.
Entretanto, a viagem cinematográfica Paisagens do Fim, é desdobramento de uma outra viagem, uma que o nosso Carlinhos vem aprontando desde que criou, em 2021, o site-livro Paisagens do Fim – Cenários reais pós-catástrofe no cinema de ficção. Tudo porque a professora e cineasta Aída Marques o provocou com a máxima: "Isso daria um belo filme". E deu mesmo, e isso mostra o quanto ela tinha razão, para a felicidade de muitos amantes do bom e velho cinema.
A montagem de Paisagens do Fim organiza o tema das ruínas em subtemas, com os filmes sendo pacientemente enfileirados de modo sempre a ampliar o conjunto temático. Alessandra Negrini, em Acqua Movie, com o misto de beleza e frieza, é a anfitriã tanto no início quanto no fim do filme, a nos convidar para um anticlímax de um mundo movido por uma ânsia destrutiva no qual o cinema e as artes estão sempre prontos a indagar e teorizar. É bom que se diga, que esse é verdadeiramente um filme com uma verve autoral, já que Carlinhos roteirizou, dirigiu, montou e narrou essa saga artística sobre filmes que interagiram diretamente com as ruínas.
Depois de realizar, em 2022, a bela homenagem ao combativo compositor e cantor Taiguara (que pode ser visto no link https://vimeo.com/726331864) com um belo ensaio documental, agora o nosso mestre nos brinda com um consistente e belíssimo ensaio em vídeo, que segundo o próprio Carlinhos inspirado nas narrativas ensaísticas do também crítico Mark Cousins, um norte-irlandês apaixonado pela história do cinema. Embora eu devo confessar, que o filme tenha me evocado mais a saga de Martin Scorsese, quando este narrou suas viagens sentimentais pelo cinema de formação, mas aqui com a vantagem de que a voz adocicada de Carlinhos se mostra bem superior à esganiçada e quase infantil do mestre estadunidense.
Sim, começo a minha reflexão pela voz macia e generosa de Carlinhos, ainda mais que é dela que se emana muito da força desse ensaio. Depois da primeira audição de sua voz, ficamos a esperar ansiosamente pelo comentário a seguir, que comentará o próximo filme a ser mostrado. A inteligência perspicaz e certeira, marca indelével das críticas assíduas do nosso Carlinhos, serve de um guia seguro a passear pelas imagens que se perfilam saborosamente a nossa frente. São quase duas horas de deleite, ainda mais para quem ama as imagens em movimento e os sentidos infinitos que elas podem emanar. O filme-ensaio de Carlinhos permite um mergulho contraditório e pleno por imagens banhadas em tragédia e poesia. É a arte recriando o mundo trágico em busca de algo a nos impelir a uma outra vida possível. Nem que seja uma fresta de esperança para continuarmos a acreditar em um mundo mais harmônico.
Mesmo que o filme de Carlinhos parta da ideia de paisagem, tendo a compreender que o elemento humano está no cerne sempre, pois a vida do planeta depende em primeira e última instância da ação humana, de nossa intenção tanto destrutiva quanto preservacionista. As guerras, catástrofes naturais e químicas são consequências quase sempre da ação humana, seja pela ambição desenfreada na destruição ou no altruísmo de quem enfrenta os interesses escusos que encaminham o mundo para o seu fim.
Paisagens do Fim se organiza fundamentalmente pelo cinema e sua capacidade de interagir com as paisagens de ruínas, muito embora Carlinhos nos mostre o quanto essa ideia já era historicamente anterior ao cinema. Entretanto, foi, é ainda o é, o cinema quem mais produziu as imagens de ruínas. Basta voltar um pouco no tempo e assistir aos filmes do neorrealismo para se perguntar o quanto eles foram basilares para se introduzir o drama humano cinematográfico em meio às ruínas. Ver a trilogia da guerra de Roberto Rossellini, por exemplo, e constatar o quanto a guerra é a maior catástrofe humana já produzida e como as suas consequências foram atroz para a ideia de convivência pacífica entre os homens. E falar da Segunda Guerra Mundial é reafirmar o terror do fascismo e do nazismo para a humanidade, a intolerância como força motriz que levou apenas à morte e à destruição. Outros momentos históricos estão igualmente marcados em Paisagens do Fim, como Kosovo, Líbano, Brasil e os territórios da Faixa de Gaza. As muitas ruínas do mundo estão exemplarmente representadas nos 46 filmes que são analisados nesse filme-ensaio.
Ao ver tantos filmes que vão trabalhando a vida contemporânea em seus mais diferentes territórios, vamos descobrindo acerca da revelação do quanto são multifacetados os filmes sobre catástrofes, por eles compreenderem a complexidade na qual o mundo da política afetou a própria sociedade em sua face mais visível: a da arquitetura. Por meio de Paisagens do Fim vamos visitando países de diferentes localizações no globo pelos filmes, do Japão à América a destruição e as ruínas se acumulam. É chocante ver a Alemanha três anos depois do fim da guerra ainda convivendo com a ruína. Contudo, o mais interessante que Paisagens do Fim mostra é o quanto essas tragédias físicas impactaram moral e espiritualmente as populações que passaram por todo esse massacre. Como as tragédias da destruição impactaram nas almas e nas subjetividades. Os filmes formam propícias paisagens para esse fim, por explorar a tragédia interior, além de reafirmar a exterior.
Paisagens do Fim diz muito sobre uma determinada maneira de ver a geografia em um sentido ampliado. São exibidas vastas paisagens territoriais e humanas, um diálogo permanente entre território e indivíduos. Claro, que a seleção de 46 filmes não exaure o tema, aliás a ideia nem é essa, mas o principal é como Carlinhos constrói aos seus olhos esse universo amplo. É fantástico ver como os artistas da ficção privilegiaram aspectos diferentes da linguagem cinematográfica, optando ora por uma visão mais realista ora por uma mais fantasiosa. Outro aspecto que um filme como esse provoca é o de sugerir e aguçar o interesse para filmes ainda não visto pelo espectador. Há um espírito francamente cinéfilo em cada imagem escolhida e percebe-se isso pelos comentários pertinentes e primorosos nos quais somos agraciados.
Há ideias de continuidade de filme para filme que são perfeitamente assinaladas pela narração, a mais marcante é a do drama do suicídio infantil como revelação primordial e rascante sobre a falta de perspectiva de presente e futuro para a geração de crianças que vivem uma guerra em seu território de nascimento. Ao que tudo indica, a força da imagem de Rossellini em Alemanha, Ano Zero (1948) parece ser determinante para muitos cinemas que viriam depois e Carlinhos mostra que estava atento a esse fato específico. A importância do neorrealismo italiano é brutal, ainda mais quando pensamos que foram esses cineastas que puseram corajosamente as câmeras dos estúdios da Cinecittá para ganhar às ruas, isto é, o ambiente de ruínas que marcava a Itália do pós-guerra. Esse impacto revela uma ousadia criativa em meio ao caos de um país destroçado pelas bombas inimigas.
Paisagens do Fim deveria passar por um processo de finalização, principalmente de som, para poder ganhar os espaços de cinemas, afinal, todo ele é concebido por trechos de obras que muito contribuem para pensar o mundo que vivemos e que numa tela grande potencializam suas mensagens e significados. Esse é um material altamente reflexivo, um tipo de inventário temático que eleva o pensamento acerca do cinema, de sua construção como discurso, mas não se furta ainda a nos fazer pensar sobre as motivações que empurram o mundo sistematicamente para o sofrimento e as ruínas.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!