Isso porque antes de propor uma reconstrução do épico histórico, uma atualização na forma narrativa no gênero, o diretor aceita os modelos arcaicos do fazer desse tipo de filme, talvez até os exagerando com tintas fortes, o que se revela um equívoco irrevogável de princípio. A escolha do ator Mads Mikkelsen como o Capitão Ludvig Kahlen é perfeita para interpretar um personagem determinado em colonizar uma região dada como improdutiva pelo governo, que por seu lado concorda em lhe conceder a permissão em troca de um título nobiliárquico, uma propriedade e alguns colonos para trabalhar na terra. Isso tudo é acordado na certeza que os políticos tinham acerca do fracasso da empreitada de Kahlen.
Mas nem tudo sai como esperado, claro. Como em uma boa aventura, o herói precisa enfrentar a ambição de De Schinkel (Simon Bennebjerg), um nobre local que esbanja prestígio político, demonstrações ostensiva de violência para deixar claro o quanto estaria disposto a fazer o negócio de Ludvig Kahlen fracassar. O filme praticamente se reduz ao confronto entre os dois e a participação de alguns personagens que circundam esse conflito principal.
Dentre esses personagens circundantes se destacam a governanta Ann Barbara (Amanda Collin), cujo marido é perseguido pelo ex-patrão, que obviamente era De Schinkel. Ainda se soma à história a personagem Anmai Mus (Melina Hagberg), uma menina cigana que enfrenta o preconceito devido à origem étnica. Ela, junto com Ann Barbara, talvez sejam as personagens mais intensas do filme. A atriz Kristine Kujath Thorp interpreta Edel Helene, mulher prometida para casamento pelo pai ao primo De Schinkel, mas cujo futuro é destinado ao insosso.
A fotografia de Rasmus Videbaek é um dos destaques de O Bastardo, por conseguir imprimir uma grandiosidade que muito lembra os grandes épicos de faroeste e onde a paisagem selvagem e de difícil lida interage diretamente com os desejos e ansiedade dos personagens. A direção de arte também pontua muito bem as diferenças econômicas entre mocinho pobre e vilão rico. A música épica garante a tendência imponente da história. Já a montagem linear, garante o acompanhamento confortável da atenção do público. Assim, o filme pode ser visto como um produto de acabamento técnico refinado, embora opte por facilitar o entendimento do enredo, mesmo que muitos personagens transitem no transcorrer da narrativa.
O Bastardo foi o representante dinamarquês para o Oscar de 2024, e de certa maneira, o filme parece ter sido realizado com a missão de fisgar o prêmio na grande festa da indústria do cinema estadunidense. Claro que paira sempre uma distância entre ação e gesto. O roteiro, baseado no livro O Capitão e Ann Barbara, da escritora Ida Jessen (também uma das roteiristas do filme), é redondo e planejado dentro de uma estrutura clássica e previsível, daqueles que podem ser considerados funcionais, embora no seu conceito careça de uma dose de ousadia e criatividade. A escolha do casting foi realizada com todo o cuidado, cada personagem está caracterizado com o máximo de precisão.
Contudo, se a fotografia é ótima, a direção de arte competente, o roteiro funcional e o casting irretocável, o que falta para que O Bastardo seja uma obra mais expressiva? Ao meu ver a maior carência do filme está na construção chapada dos personagens que rivalizam durante toda a trama. O Capitão Kahlen é o heroi determinado a cumprir suas metas para obter reconhecimento pelo trabalho inclemente, enquanto De Schinkel é o vilão caricato, que a cada nova cena desafia o bom senso, com atitudes que levam sempre a maldade além. A falta de freio desse personagem cria um maniqueísmo grotesco na história. O maior problema de O Bastardo está na sua aceitação de narrar uma trama cujo fundo histórico se apaga frente às desavenças individuais, fazendo o público acreditar que as sociedades se constroem apenas pelas ações de personagens isolados, o que faz com que o contexto histórico seja praticamente anulado pelos feitos de "grandes" homens.
Porém, nada é tão desastroso que não possa piorar. O final repentino e imprevisível toma conta do enredo, com o personagem do Capitão Kahlen se voltando contra a sua própria história, ao resolver virar mais um dinamarquês comum, devotado a uma família construída praticamente a fórceps. Os seus ideais inicialmente foram sugeridos como algo inegociável e imprescindível para a consolidação do caráter de um militar de carreira. Do nada, esses valores vão para o ralo e uma nova ética nasce: a da família. E vale salientar como essa ideia de constituição familiar está na base ideológica do próprio cinema estadunidense e ela forja um ideal conservador, que aliás, sustenta a própria concepção de cinema do filme. Seria uma ideia pensada para o Oscar? Talvez nem tenha sido essa a finalidade da produção, mas hoje já sabemos que nem mesmo assim o filme chegou na indicação pretendida.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!