Texto por Marco Fialho
Na altura do campeonato chega a ser óbvio ficar repisando que o diretor Woody Allen não nos surpreende mais com suas histórias recheadas de traição, requinte, jazz, acasos e tramas rocambolescas. Golpe de Sorte em Paris certamente não é uma obra a puxar o tapete em relação a essas esperas. Entretanto, acredito que a maior força desse último trabalho de Allen esteja no quão azeitado se revela o roteiro. Se o enredo em si chove no molhado dentro do universo ficcional do diretor, o roteiro é de uma artesania de mestre e isso é um dos elementos que salva o filme do insosso.
Impossível não remeter esse trabalho a tantos outros do diretor, como Match Point (2005) ou Meia-Noite em Paris (2011) ou ainda Café Society (2016), onde sorte, amor e riqueza estão diretamente relacionados. Para quem produziu tanto quanto Woody Allen, é natural que haja oscilações, embora o diretor já tenha demonstrado o quanto é hábil como roteirista. Se as ideias se esbarram aqui e acolá, e isso é um fato realmente, a tarefa de Allen passa a ser redobrada, a de se superar apesar de parecer ser sempre tão repetitivo como roteirista e encenador. Mas o que mais considero e destaco em Golpe de Sorte em Paris é o capricho no roteiro, de pensar detalhes e sutilezas presentes na construção dele.
Na história de Golpe de Sorte em Paris, Fanny (Lou de Laâge) e Aubert (Niels Schneider) são dois adultos jovens que estudaram juntos na puberdade e que se esbarram pelas ruas de Paris. A ideia de acaso está inicialmente nesse fato, pois essa possibilidade remota, funciona como um bilhete premiado de loteria. Como sempre, tudo na trama de Allen é envolto em um conflito entre algo que aprisiona no presente em contraste com algo que pode levar a uma libertação pelo amor, embutido aí uma boa dose de desejo sexual entre os personagens. Fanny está casada com o milionário Jean (Melvil Poupaud), um homem apaixonado e obcecado pela beleza da esposa. Ela trabalha numa empresa que realiza leilões de arte, já o jovem Aubert é um escritor de romances tentando consolidar a promissora carreira.
Essa é definitivamente uma trama típica de Woddy Allen e muito afeita para que ele crie o que melhor sabe fazer: situações constrangedoras entre os personagens que se contradizem e se traem a todo instante. Jean espanta a todos com o seu enriquecimento repentino, sobretudo depois que o sócio desapareceu em circunstâncias suspeitas, num tipo de empresa cujo objetivo é fazer ricos ficarem mais ricos. Fanny precisa inventar mil histórias a Jean para que ele não desconfie de seus encontros secretos com Aubert.
Woody Allen constrói Golpe de Sorte em Paris com boa dose de magia, como se Paris pudesse promover por si uma determinada história de encanto e amor. Para garantir essa magia, Allen conta com a colaboração, que já pode ser considerada como habitual, do excelente diretor de fotografia italiano Vittorio Storaro, que muito contribui para que a imagem comunique um quê de irrealidade à Paris de Allen. Os encontros de Fanny e Aubert são agraciados por uma luz surpreendente, que banha a cena com um alaranjado com toques de sépia, em uma engenhosidade que passa a impressão de calor com um toque nostálgico. E quando Fanny, mais para o fim do filme, se encontra com Jean, há uma sombra azulada em um lado de seus perfis. Allen e Storaro, como bons mestres do cinema, brincam com a luz, e por meio dela, estão a narrar a história. Um golpe nada de sorte.
Mas Golpe de Sorte em Paris se sustenta mesmo pelos diálogos mordazes e certeiros de Allen, com seu humor atravessado e deitado na ironia. O que dizer da insistência de Jean em mostrar à esposa e aos amigos o seu infantil circuito de trem eletrificado? Allen sabe explorar bem as excentricidades de Jean, para fazer dele um personagem milionário e ridículo ao mesmo tempo. A interpretação de Melvil Poupaud é a que melhor garante o humor, além de representar a falsa sofisticação dos novos ricos, embebidos em vaidade e narcisismo. Outra personagem interessante é Aline (uma estupenda Valérie Lemercier), mãe de Fanny, quando se mete a investigar a vida de Jean e assim passa a ser alvo de sua psicopatia.
Com maestria, Allen trabalha o mundo dos ricos quase como um deboche, quando Jean profere jargões risíveis e contraditórios como "eu crio a minha sorte", com a ideia de que o dinheiro compra a sorte dos ricos. Se a encenação de Allen soa como requentada em alguns momentos, é o roteiro ágil e inteligente que maquina e salva o filme de cair em um abismo que o diretor vem situando seus últimos filmes. O melhor de ser caçador é a sua possibilidade inesgotável de ser caça um dia e Allen sabe brincar com essa artimanha que o cinema também participa e se imbui, afinal, depois de sobreviver aos casos jurídicos e ao me too, a vida de Allen não deixa de se assemelhar ao universo ambíguo da caça e do caçador.
Se falamos tanto que Hollywood precisa de roteiristas (estou até cansado de falar isso), pois há uma crise profunda de boas histórias em seus grandes empreendimentos cinematográficos, Golpe de Sorte em Paris se nutre de argúcia e esperteza de Allen ao reinventar a sua trama, já que na encenação o que temos é mais do mesmo do diretor. O final surpreende até mesmo aquele chato que gosta de dizer ou adivinhar como o filme terminará, pois ele não só é bom como eivado de significados e críticas em relação ao enriquecimento fácil e uma bela forma de rir de uma classe que na vida não cansa de vencer e zombar da maioria da população que vive de um mísero salário. De certo, um golpe de mestre de um dos mestres do roteiro hollywoodiano, que inclusive edificou a carreira escrevendo muitos textos primorosos.
Bom, pra mim, o mais do mesmo dele é mais do que satisfatório, é puro deleite. Nesta altura do campeonato, ele pode ser dar este luxo 😉
ResponderExcluirEntão empatamos Imara, para mim também é muito satisfatório. Só que como crítico, tenho que pontuar essas questões, mesmo que no todo o filme me agrade. Inclusive, comecei a amar cinema quando assisti a "Hannah e suas Irmãs", em 1986. Meu respeito por W. Allen é imenso.
ExcluirRelendo após ver, como sempre e o aproveitamento é muito mais amplo ...
ResponderExcluira fotografia
incrível, cheguei a pensar que esse aspecto seria o que deu valor à história (mas voltando p/casa, penso que é mostrada uma preocupação com a mulher, com o feminino e com poesia, presente tb nos espaços, e o direito dos animais.
Uma crítica sobre como são tratadas, num mundo em que a masculinidade imatura é tão atuante...
(e aquele fliperama tão controlável,
mas e o acaso, a sorte?)
Obrigado Ana! Como sempre, trazendo seu olhar atento para o texto e observando detalhes preciosos. Um abraço!
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