Pular para o conteúdo principal

DEIXE-ME (2024) Dir. Maxime Rappaz


Texto por Marco Fialho

Em Deixe-me, o diretor Maxime Rappaz pouco deixa transparecer sobre a personagem Claudine (Jeanne Balibar em uma interpretação impecável). Entretanto, não resta dúvida que esse é um filme sobre ela, uma mulher madura, mas que não viveu tanto para buscar a felicidade, sempre oprimida por ter que cuidar do filho com deficiência motora e bastante dependente dela. O marido já se foi e a única pessoa a poder contar é com uma vizinha que uma vez na semana, às terças, fica com o filho para ela sair. 

Então, as terças se tornam algo simbólico para Claudine, um momento em que pode dividir a sua solidão com homens aleatórios em um hotel nos Alpes suíços. Essas saídas eróticas podem parecer estranhas por não serem atitudes esperadas de uma mulher bonita, elegante e bem vestida. É bom frisar que ela não faz programas, não há dinheiro ou qualquer tipo de pagamento envolvido, o que nos deixa ainda mais surpresos e intrigados com a atitude dela. 

Deixe-me tem uma estrutura narrativa bem definida, basicamente por meio de dois espaços. Um deles é a casa onde Claudine mora, outro é o hotel onde realiza os encontros sexuais. O primeiro representa um enclausuramento, o segundo uma possibilidade de libertação, pelo menos fisicamente falando. O primeiro é o ambiente do previsível, e também de trabalho (ela é costureira), já no segundo há uma margem para o imponderável. Há um mistério sobre o íntimo dessa mulher que jamais penetraremos. O filme não serve como um meio de revelá-la e desnudá-la. Não há esse impulso invasor, tem nuances de sua interioridade que permanecerão com ela até o fim. Para o diretor não é papel do cinema destrinchar tudo sobre ela, mas sim, apenas mostrar  o que ela permitir mostrar. E isso tem um misto de mistério, beleza e respeito pelo personagem.

Quando Claudine encontra Michael (Thomas Sarbacher), um dos homens aleatórios do hotel, tudo se inclina para algo mais perene, a relação tende a ficar séria e uma perspectiva de futuro se abre. A direção de Maxime Rappaz imprime um ritmo quase contemplativo, que dá espaço para compreendermos a tristeza emanada por Claudine. Mas a direção se mostra sensível ao abordar aspectos simbólicos e imaginários, como a sacada das cartas inventadas que Claudine lê para o filho, escritas por ela, baseada nos depoimentos dos homens aleatórios que encontra no hotel, como se fossem escritas pelo pai do menino a viajar pelo mundo. Ou ainda, nas imagens da princesa Lady Di que ela recorta das revistas para dar para o filho, personagem midiática pela qual ele guarda uma grande adoração. São pequenos sinais de delicadeza que lentamente vai desenhando os personagens do filme.

Deixe-me impõe-se com muita sensibilidade, especialmente pelo trabalho perfeccionista de Jeanne Balibar como Claudine, cuja delicadeza é construída nos pequenos detalhes, pelos gestos, olhares e posturas corporais. A câmera de Rappaz movimenta-se com elegância pelos ambientes, personagens e seus figurinos, quase que não a percebemos. Ao final, a tristeza de Claudine, mesmo que preservada em uma esfera intimista, se expande pela tela e nos atinge. Há uma dor incontida, de quem mais do que aprisionada pelo mundo, está aprisionada pela sua própria vida. Deixe-me é uma ode a esse tipo de tristeza específica, na qual a personagem não consegue se libertar, mesmo que saiba quais ações exatamente deve tomar para implementá-la.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...