Texto por Marco Fialho
Bocaina, filme dirigido pela dupla Ana Flávia Cavalcanti e Fellipe Barbosa, é daqueles que nem adianta ler a sinopse oficial antes. Eu não sou desses, embora esse eu acabei lendo a sinopse antes de assistir. Nela, somos informados sobre o nome das personagens e que ela são irmãs, porém isso é praticamente irrelevante, já que não há um diálogo sequer durante os 71 minutos do filme. Portanto sabemos do nome dos personagens pela sinopse. O fato de serem irmãs também descobrimos no crédito, pois no filme há somente uma imagem, que parece ser um flashback, de duas meninas no carro com um homem. Como não sabemos qual é a imagem do pai, pode-se conjecturar que fossem elas chegando à Serra da Bocaina de carro com o pai.
Outra informação que a sinopse nos traz é que Bocaina se passa no período da pandemia, o que também é irrelevante, já que pelas imagens esse dado não dá para ser notado. Nenhuma máscara é usada ou está pendurada em algum lugar e até quando as duas personagens vão a um lugarejo mais urbanizado, elas vão sem máscara. Outra informação vinda da produção é que o forasteiro (Alejandro Claveaux) que chega na casa delas, que fica numa região afastada da cidade, e que ele as ajuda a se livrarem das amarras. Sinceramente, não entendi como esse fato ocorre. Pelas imagens isso não fica muito evidente. O máximo que ele faz é tomar banho pelado na cachoeira, embora em nenhum momento faça qualquer movimento para tentar atraí-las sexualmente. A única cena de sexo é dele se masturbando sozinho no meio do mato. Outra estranheza é que quando elas o encontram caído na estrada, elas não usam máscara, haja visto que não se sabia nada sobre a procedência do forasteiro e esse seria um cuidado mínimo a ser tomado.
Esses dois parágrafos iniciais, ambos calcados na sinopse do filme, parecem bobos, mas creio que são esclarecedores como preâmbulos de nossa análise. Afinal, o que o filme nos oferece como experiência cinematográfica? Essa pergunta é importante para pensarmos o que os realizadores idealizaram e o que eles realizaram de fato. Adoro elipses, filmes que valorizam a passagem do tempo, ações cotidianas e quem acompanha nosso trabalho por aqui sabe disso, portanto, não há preconceito contra a linguagem escolhida e sim uma análise consequente sobre o que a realização nos propicia como obra. O fato de não haver diálogos também em nada influencia a nossa análise, essa não é a questão que torna o filme complicado.
Como a maioria do cinema contemporâneo, Bocaina esboça seu discurso em cima de ações cotidianas frugais, como o cuidar do galinheiro, o ato de fazer refeições, de partilhar a cachaça, a música, de lavar a louça ou almoçar e jantar. Essas ações filmadas sem corte, passa uma ideia de tempo que é fundamental para se captar o ritmo de vida dos personagens. Os diretores contam com duas atrizes experientes (Malu Galli e Ana Flávia Cavalcanti) que dão conta da proposta de representar sem ter um discurso oralizado, mas a grande questão que fica é sobre o quê se quer discursar. Há uma relação óbvia dos personagens entre eles e com a natureza, selvagem, mas a partir disso o que se pode ser extraído? O forasteiro divide algumas funções domésticas e da fora da casa e escuta músicas com elas depois de recuperado.
A parte mais comunicativa do filme é realizada pelo uso das músicas que giram na única vitrola da casa. Ouvimos Maria Bethânia, Elizeth Cardoso e Juçara Marçal em momentos em que os corpos mais parecem querer se soltarem, em especial depois de uma cachacinha, inclusive a cena dele e delas bebendo ao som de Eu Bebo Sim, na voz de Elizeth Cardoso, é a melhor do filme. Tudo indicava que ali, bem na metade do filme, houvesse uma mudança mais interessante nos comportamentos, o que não acontece. A irmã mais nova fica doente nesse instante e a trama volta a ficar no marasmo. Há ainda um toque do cinema fantástico com umas luzes misteriosas que são avistadas no céu, mas esses elementos são incapazes de igualmente mexer com algo na trama.
De qualquer maneira, Bocaina discursa de alguma maneira sobre cuidado e amparo que precisamos ter uns com os outros, além de questionar o que de fato é isolamento social. Evidente que essa é uma proposta para ser sentida, até mesmo antes de ser entendida, mas mesmo assim é uma pena que o hermetismo dele impeça uma experiência mais proveitosa para quem está aberto a sentir novas formas cinematográficas.
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