Texto por Marco Fialho
Não comungo com as opiniões cada vez mais recorrentes na crítica de que o cineasta inglês Ken Loach ultimamente não produz grandes filmes (Você Não Estava Aqui, Eu, Daniel Blake e A Parte dos Anjos, apenas para citar alguns). Muito pelo contrário, o que vejo é um cineasta corajoso, capaz de expor ideias claras sobre o mundo e o papel político do cinema. Esse engajamento expressa a força do seu cinema, independente e compromissado com os mais humildes, os trabalhadores e os seres relegados pelas elites. Denunciou sem dó o sistema de seguridade, a uberização e várias injustiças sociais. Se alguns o chamam de dogmático, eu prefiro vê-lo como um artista socialmente consciente.
O Último Pub revela em sua abordagem um olhar sensível de Ken Loach pelos refugiados sírios e demarca a importância de seres humanos como TJ Ballantynes (Dave Turner), um dono de um pub decadente decidido a ser solidário e empático. Me chamou a atenção um humanismo acentuado ou talvez um carinho mais pronunciado do que em outras obras anteriores. Se em Eu, Daniel Blake há um ódio explícito ao sistema burocrático racionalmente calculado para massacrar os mais necessitados, agora essa raiva está devidamente controlada para que o afeto possa elevar-se.
O que achei interessante em O Último Pub foi poder aferir o quanto existe uma estratégia deliberada de propagação do ódio pelas redes sociais como um fenômeno mundial. A ascensão da extrema direita pode ser vista como algo mais amplo a dominar os espaços virtuais a ponto de também se manifestar pelas ruas das cidades. Tem um diálogo magistral entre TJ e Charlie (Trevor Fox), seu ex-colega de escola, um homem amargurado e divulgador de ódio gratuito junto com outros amigos contra os sírios. TJ chega a dizer a ele que a situação do bairro já estava ruim antes da chegada dos refugiados. São desabafos vindos do coração, com uma vontade imensa de reconciliação, não de briga.
Há uma homenagem muito bonita em O Último Pub que Ken Loach presta à imagem fotográfica. Ela está presente tanto pelas fotos antigas expostas nas paredes da sala contígua ao bar, como nas atuais, em que a cativante personagem Yara (Ebla Mari), a jovem síria que tem a sua máquina quebrada por um ato violento de intolerância de um morador, logo que ela e a família desembarcam em um ônibus nesse decadente bairro suburbano inglês. As imagens de Yara basicamente são de sororidade, amizade e desejo de coletividade. Ken Loach nos brinda com cenas fortes e carregadas de emoção, algumas cuidadosamente preparadas para esse fim, que chegam a beirar o melodramático.
Uma das camadas mais impactantes de O Último Pub é a do tempo. O passado se consubstancia como um peso nas costas desses suburbanos londrinos. As minas de carvão deixaram marcas profundas e permitiram que o lugar perdesse parte da dignidade desde que foram fechadas após uma greve por melhores condições de trabalho e salubridade. Ken Loach quer mostrar o quanto o sistema joga uns contra os outros, pobres contra pobres, para se camuflar acerca dos principais responsáveis pela pobreza e decadência das famílias mineiras que nunca mais conseguiram se erguer financeiramente.
Ken Loach trabalha a estima desses personagens periféricos, mostra o quanto são inócuas as rixas entre moradores e os recém-chegados da Síria. O cinema aqui perfaz as relações e perscruta os meandros dessa falsa dicotomia. Ao final, todos são deserdados de alguma forma, estão desamparados e separados por uma ideologia xenófoba vazia e improdutiva, além de injusta. A cadela de TJ morre tragicamente e as reações na internet são de ódio e deboche. Loach quer evidenciar o quanto essas ações levam todos à desintegração.
O Último Pub é resolutamente um filme de resistência e esperança. Ken Loach se esforça pela conciliação em uma sociedade degradada e afundada na intolerância. O diretor pode causar espanto em alguns pelo lirismo que o filme desperta em muitas das cenas, em especial quem só espera ver o seu ativismo em ação. Cenas como a do final ou a que TJ fala do significado simbólico de proteção e amizade da cadela Marra são realmente tocantes, de grande apelo dramático e afetivo. Outro simbolismo interessante está no letreiro do pub, onde a letra k insiste em ficar dependurada, como uma imagem a dizer muito sobre o peso do tempo e a decadência daquele espaço.
Contudo, o que mais me impressionou em O Último Pub é o quanto a história se estabelece e se estrutura pelo diálogo. Há sempre um encaminhamento pela troca de ideias e impressões sobre cada problema apresentado. Nesse aspecto, não só TJ e Yara são fundamentais, mas também a presença de Laura (Claire Rodgerson), filha de um ex-grevista e sempre disposta ao ajuntamento. Creio que Loach mais uma vez investe em algo que lhe é muito próprio: o sentido de grupo e coletividade. Fica latente o quanto é crucial uns ajudarem aos outros, partindo da ideia de que o Estado nada oferecerá para quem mora na periferia.
É incrível como um filme tão político como O Último Pub sabe construir seus traços de afetividade. De repente, aparece um estandarte com o desenho do velho carvalho (nome e símbolo visual do pub e ligado às tradições do bairro) com os dizeres força, solidariedade e resistência. Quando enfim acham o corpo do pai de Yara na Síria, podemos sentir o quanto o ódio e a intolerância são o motor da divisão entre os povos. Na Síria ou na Inglaterra (ou no Brasil), as fake news promovem a desunião e a desesperança, seja as dos refugiados ou as de qualquer outro povo. Para quem esperava mais um Ken Loach pistola como em Eu, Daniel Blake, o que encontra em O Último Pub é uma rede de afetos e solidariedade. É o cinema político moldando historicamente as suas formas.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!