Pular para o conteúdo principal

O ÚLTIMO PUB (2023) Dir. Ken Loach


Texto por Marco Fialho

Não comungo com as opiniões cada vez mais recorrentes na crítica de que o cineasta inglês Ken Loach ultimamente não produz grandes filmes (Você Não Estava Aqui, Eu, Daniel Blake e A Parte dos Anjos, apenas para citar alguns). Muito pelo contrário, o que vejo é um cineasta corajoso, capaz de expor ideias claras sobre o mundo e o papel político do cinema. Esse engajamento expressa a força do seu cinema, independente e compromissado com os mais humildes, os trabalhadores e os seres relegados pelas elites. Denunciou sem dó o sistema de seguridade, a uberização e várias injustiças sociais. Se alguns o chamam de dogmático, eu prefiro vê-lo como um artista socialmente consciente.

O Último Pub revela em sua abordagem um olhar sensível de Ken Loach pelos refugiados sírios e demarca a importância de seres humanos como TJ Ballantynes (Dave Turner), um dono de um pub decadente decidido a ser solidário e empático. Me chamou a atenção um humanismo acentuado ou talvez um carinho mais pronunciado do que em outras obras anteriores. Se em Eu, Daniel Blake há um ódio explícito ao sistema burocrático racionalmente calculado para massacrar os mais necessitados, agora essa raiva está devidamente controlada para que o afeto possa elevar-se. 

O que achei interessante em O Último Pub foi poder aferir o quanto existe uma estratégia deliberada de propagação do ódio pelas redes sociais como um fenômeno mundial. A ascensão da extrema direita pode ser vista como algo mais amplo a dominar os espaços virtuais a ponto de também se manifestar pelas ruas das cidades. Tem um diálogo magistral entre TJ e Charlie (Trevor Fox), seu ex-colega de escola, um homem amargurado e divulgador de ódio gratuito junto com outros amigos contra os sírios. TJ chega a dizer a ele que a situação do bairro já estava ruim antes da chegada dos refugiados. São desabafos vindos do coração, com uma vontade imensa de reconciliação, não de briga. 

Há uma homenagem muito bonita em O Último Pub que Ken Loach presta à imagem fotográfica. Ela está presente tanto pelas fotos antigas expostas nas paredes da sala contígua ao bar, como nas atuais, em que a cativante personagem Yara (Ebla Mari), a jovem síria que tem a sua máquina quebrada por um ato violento de intolerância de um morador, logo que ela e a família desembarcam em um ônibus nesse decadente bairro suburbano inglês. As imagens de Yara basicamente são de sororidade, amizade e desejo de coletividade. Ken Loach nos brinda com cenas fortes e carregadas de emoção, algumas cuidadosamente preparadas para esse fim, que chegam a beirar o melodramático.    

Uma das camadas mais impactantes de O Último Pub é a do tempo. O passado se consubstancia como um peso nas costas desses suburbanos londrinos. As minas de carvão deixaram marcas profundas e permitiram que o lugar perdesse parte da dignidade desde que foram fechadas após uma greve por melhores condições de trabalho e salubridade. Ken Loach quer mostrar o quanto o sistema joga uns contra os outros, pobres contra pobres, para se camuflar acerca dos principais responsáveis pela pobreza e decadência das famílias mineiras que nunca mais conseguiram se erguer financeiramente. 

Ken Loach trabalha a estima desses personagens periféricos, mostra o quanto são inócuas as rixas entre moradores e os recém-chegados da Síria. O cinema aqui perfaz as relações e perscruta os meandros dessa falsa dicotomia. Ao final, todos são deserdados de alguma forma, estão desamparados e separados por uma ideologia xenófoba vazia e improdutiva, além de injusta. A cadela de TJ morre tragicamente e as reações na internet são de ódio e deboche. Loach quer evidenciar o quanto essas ações levam todos à desintegração.                          

O Último Pub é resolutamente um filme de resistência e esperança. Ken Loach se esforça pela conciliação em uma sociedade degradada e afundada na intolerância. O diretor pode causar espanto em alguns pelo lirismo que o filme desperta em muitas das cenas, em especial quem só espera ver o seu ativismo em ação. Cenas como a do final ou a que TJ fala do significado simbólico de proteção e amizade da cadela Marra são realmente tocantes, de grande apelo dramático e afetivo. Outro simbolismo interessante está no letreiro do pub, onde a letra k insiste em ficar dependurada, como uma imagem a dizer muito sobre o peso do tempo e a decadência daquele espaço.  

Contudo, o que mais me impressionou em O Último Pub é o quanto a história se estabelece e se estrutura pelo diálogo. Há sempre um encaminhamento pela troca de ideias e impressões sobre cada problema apresentado. Nesse aspecto, não só TJ e Yara são fundamentais, mas também a presença de Laura (Claire Rodgerson), filha de um ex-grevista e sempre disposta ao ajuntamento. Creio que Loach mais uma vez investe em algo que lhe é muito próprio: o sentido de grupo e coletividade. Fica latente o quanto é crucial uns ajudarem aos outros, partindo da ideia de que o Estado nada oferecerá para quem mora na periferia. 

É incrível como um filme tão político como O Último Pub sabe construir seus traços de afetividade. De repente, aparece um estandarte com o desenho do velho carvalho (nome e símbolo visual do pub e ligado às tradições do bairro) com os dizeres força, solidariedade e resistência. Quando enfim acham o corpo do pai de Yara na Síria, podemos sentir o quanto o ódio e a intolerância são o motor da divisão entre os povos. Na Síria ou na Inglaterra (ou no Brasil), as fake news promovem a desunião e a desesperança, seja as dos refugiados ou as de qualquer outro povo. Para quem esperava mais um Ken Loach pistola como em Eu, Daniel Blake, o que encontra em O Último Pub é uma rede de afetos e solidariedade. É o cinema político moldando historicamente as suas formas.          

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteiramente to

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras difere