Texto por Marco Fialho
Em O Mensageiro, a diretora Lucia Murat revisita um dos temas mais caros de sua longa trajetória como diretora, o da ditadura cívico-militar brasileira, para ampliar a visão para o tema, normalmente cercado por fervorosas dicotomias e antagonismos fervorosos.
Dessa vez, Lucia Murat enfoca em Armando (Shico Menegat), um soldado que em plena ditadura militar conhece Vera (Valentina Herszage), um prisioneira torturada pelo regime político opressor. É sabido o quanto este tema da tortura mexe com a diretora, que foi mais uma das milhares de vítimas torturadas nessa época obscurantista.
O Mensageiro pode causar incômodos profundos em algumas pessoas por optar em mostrar Armando como um personagem humanizado e dividido entre o horror da tortura e a propaganda sistemática que os militares faziam dos militantes de oposição, todos classificados com a alcunha única de comunistas. Esse é um dos pontos fortes do filme, mostrar o quanto complexo podia ser um militar. Outros militares no filme são construídos de maneira mais duras, como o caso do major Damião (Bruce Gomlevski), que se mostra mais convicto da necessidade de exterminar os "terroristas" comunistas.
Entretanto, Lucia Murat leva o seu filme na direção da dúvida de um soldado que se encanta com a prisioneira que é tratada no meio militar como a expressão do mal. São muitos closes realizados pela diretora, para que fique registrado o quão importante era sublinhar as fisionomias tensas desse período tão canhestro para o país. Em algumas cenas, fica em suspensão os sentimentos do jovem soldado em relação à Vera, mas se no início tudo parecia se encaminhar para um aprofundamento entre soldado e Vera, aos poucos a narrativa se direciona mais para a mãe e o soldado.
Uma das personagens mais incríveis de O Mensageiro é Maria (Georgette Fadel), uma mãe disposta a tudo para salvar a filha das masmorras da tortura. A relação entre ela e Armando é o ponto alto do filme, amparadas sempre por uma atuação firme da atriz, que consegue equilibrar em sua construção dramatúrgica desespero e afeto ao soldado que tenta estabelecer esse arriscado contato entre mãe e filha, como uma espécie de mensageiro.
Lucia Murat participa em O Mensageiro também como atriz, como uma professora de filosofia que expõe para os alunos a visão de Hannah Arendt sobre o perdão, um tema bastante controverso que divide opiniões. Para ela, a grosso modo, o perdão é uma condição humana estritamente pessoal, por mais que envolva questões privadas ou coletivas. O perdão, aqui, não tem a ver com a defesa da punição de culpados pelos seus atos, mas a forma como cada vítima absorve no decorrer da vida suas dores, numa tentativa de racionalizar algo profundamente subjetivo e marcante.
Por esses motivos expostos acima, acredito ser O Mensageiro, um filme necessário por mergulhar corajosamente na história pessoal e histórica de uma cineasta que sempre tem questões importantes para trazer à tona em seus enredos e abordagens. Um dos grandes méritos de O Mensageiro reside no fato da câmera não esconder os sentimentos dos personagens, tentar capturar deles as sensações mais ambíguas possíveis.
O Mensageiro não é aquele filme realizado para sairmos dele com as ideias todas no lugar. Muito pelo contrário, essa é uma história para dar um nó em nossas certezas, capaz de por em suspensão especialmente os sentimentos, já que racionalmente, algumas certezas sairão intactas, como o horror que devemos ter pela ditadura instalada no país a partir do golpe civil-militar em 1964 e que depois do AI-5, em 1969, transformou a política em um brutal caça às bruxas.
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