Texto por Marco Fialho
O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, dirigido por Bia Lessa, não esconde suas origens cênicas: a peça Grande Sertão: Veredas, idealizado pela própria diretora há alguns anos atrás. Bia Lessa pesquisa a obra de Guimarães Rosa há um bom tempo, já tendo realizado igualmente uma exposição em tributo a esse que é um dos maiores escritores brasileiros. A inserção de legendas, vem salientar a busca por registrar uma gramática única vinda da maneira própria do sertanejo se comunicar.
A estrutura do filme preserva a origem teatral e tudo desenrola em um cenário que muito lembra um palco cênico. Vale pontuar de início o espírito minimalista adotado pela diretora, que chega a subtrair o território ao assumir o fundo escuro e a quase ausência de elementos cênicos. Visualmente a paisagem sertaneja desaparece dando ênfase então apenas à corporalidade e o texto. Os figurinos também são econômicos e revelam uma neutralidade cênica, já que todos os personagens possuem figurinos muito similares. Esse minimalismo imagético advém de uma intencionalidade, a de realçar o aspecto que é o mais caro a Bia Lessa em seu estudo sobre Guimarães Rosa: a originalidade e a força da palavra.
Pode-se dizer que O Diabo na Rua no Meio do Redemunho é uma obra que tem a palavra como alicerce de sua dramaturgia. O texto de Guimarães Rosa talvez seja o maior protagonista do filme, há uma profusão de falas, todas elas elaboradas para soar poeticamente, a maioria retiradas em sua integralidade do texto original à adaptação fílmica. Há uma visível preocupação com as interpretações de atores e atrizes, que mantém um tom teatral sobre o literário em relação ao texto. Em algumas cenas, o personagem Riobaldo (Caio Blat) quebra a quarta parede e se dirige diretamente ao público, numa evidente referência à teatralidade da proposta da direção, como se a plateia estivesse sentada bem pertinho do palco. Vale destacar ainda o quanto o texto ganha um brilho especial quando ouvido pela boca e corpo de Diadorim (Luíza Lemmentz), que interpreta com um vigor e brilho surpreendentes.
Um dos grandes destaques de O Diabo na Rua no Meio do Redemunho é a sua criação sonora. A música de Egberto Gismonti, especialmente composta para o filme é fantástica, isto para dizer o mínimo, e a ambiência sonora do grupo mineiro O Grivo também perfaz um trabalho impecável e fundamental para o clima de tensão que Bia Lessa desenha para a história. Esse é o aspecto mais surpreendente do filme, poder vivenciar o universo de Guimarães Rosa por meio de um som inventivo e que transborda poesia a cada nova cena. Já no campo das imagens, a fotografia de José Roberto Elieser destaca um tom obscuro ao revestir o filme com um toque expressionista, com os claros e escuros bem demarcados. Essa fotografia confere à obra um quê de soturno que não deixa de ser a marca que Bia Lessa quer reafirmar em sua releitura à obra-prima de Guimarães.
Mesmo que por vezes a teatralidade seja por demais excessiva, afinal, Guimarães Rosa é antes de tudo um ourives da língua, um neologista atento às idiossincrasias linguísticas do sertão mineiro. Mas fica um pouco visível que essa primazia da palavra em O Diabo na Rua no Meio do Redemunho se traveste em uma teatralidade ora pelo gestual ora pela entonação dos personagens. Aqui, a poética das palavras parece possuir uma importância sobre a própria história que por vezes se vislumbra confusa e atabalhoada, agravada por idas e vindas no tempo difíceis de serem percebidas por uma montagem que passeia livremente por épocas e personagens. O minimalismo, se restringe mais na encenação em si, em especial perante as imagens, enquanto no campo textual o filme escorrega numa proliferação de vozes, em diálogos marcados por um certo barroquismo, em que se faz necessário conhecer, senão a obra, pelo menos algo de seu escopo.
Apesar da teatralidade excessiva na encenação, O Diabo na Rua no Meio do Redumunho possui uma força por privilegiar uma câmera inquieta e invasiva que por vezes contraria à própria noção de teatro que está no cerne da concepção cinematográfica, por corajosamente enfatizar closes expressivos de atores e atrizes, além de salientar um movimento pertinente. A câmera é, por isso, igualmente uma protagonista que empresta vivacidade e originalidade à teatralidade da encenação, a invadindo para revelar sutilezas das interpretações. O final absolutamente poético, inspirador de uma libertação das almas de personagens tão oprimidos quão loquazes, que por meio da palavra marcaram sua passagem pela Terra. Crucial reafirmar o quanto Bia Lessa é responsável por levar Guimarães Rosa para outros terrenos fora da literatura, por fazer renascer tanto no teatro quanto no cinema novos significados e sensibilidades para uma obra literária consagrada mundialmente ao conceber um olhar vigoroso, do qual emana um frescor reconfortante.
Vou assistir
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