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CIDADE; CAMPO (2024) Dir. Juliana Rojas


Texto por Marco Fialho

Cidade; Campo, novo filme da diretora Juliana Rojas, esboça uma visão permeada por uma visão cáustica da vida contemporânea ao vislumbrar tanto a vida no campo por pessoas vindas da cidade quanto de uma pessoa vinda do campo para a cidade. Para isso, a diretora dividiu o filme em duas partes independentes para abrir uma discussão sobre o tema da vida na cidade e no campo. O título traz um curioso ponto e vírgula, como um espécie de pausa poética e que mostra uma relação contraditória de distanciamento e proximidade entre os dois universos. Com esse filme, Juliana Rojas retoma um estilo de direção mais próximo ao de Trabalhar Cansa (2011), seu primeiro longa que filmou em parceria com Marco Dutra, em que os elementos fantásticos são incorporados à narrativa sem grandes extravagâncias, em especial no uso de efeitos especiais vistos com mais ênfase em seu longa anterior, As Boas Maneiras (2017).

Cidade; Campo não deixa de ter alguns momentos de autorreferências cinematográficas, com Juliana Rojas citando a si mesmo. O que é aquele lobo artificial, feito com efeitos visuais que muito remeteu ao lobisomem de As Boas Maneiras? O som e vários enquadramentos lembram o tom de terror realista de Trabalhar Cansa, essa mistura entre terror e trabalho. Inclusive gosto muito quando Juliana Rojas mistura esses elementos e cria um tipo de terror social que é muito original. Ainda tem uma peça musical cantada pela própria protagonista do primeiro episódio, que muito lembrou os números musicais de A Sinfonia da Necrópole (2014). 

Há em cada quadro de Cidade; Campo um humanismo latente, um impulso deliberado de solidariedade entre nós e os personagens. É poético ver como Juliana Rojas constrói dentro de uma proposta realista uma brecha para que o fantástico ecloda e isso está relacionado com a subjetividade dos personagens, do baque que a vida aprontou para cada um dos personagens. Logo na primeira história, Joana (Fernanda Viana) é uma desabrigada de uma das catástrofes produzidas pelo estouro de uma das barragens mineiras, que busca abrigo nas casa de uma irmã em São Paulo. Essa história impressiona por mostrar que o massacre capitalista não pertence mais somente às grandes cidades, está instaurado também no campo, podendo ser tão letal e destruidor quanto o da cidade.     

Mas Rojas aproveita a passagem de Joana por São Paulo para expor mais uma ferida típica do mundo contemporâneo, o embuste da ideia de empreendedorismo vinculado aos aplicativos de celular. De repente Joana está em Diarex, uma empresa na qual os clientes contratam faxinas com um simples clique. Mais uma vez, assim como aqueles entregadores do tipo ifood, Diarex expõe a fragilidade desse ambiente onde os direitos trabalhistas e as garantias de segurança passam ao largo de quem precisa trabalhar para sobreviver em nosso mundo. 

Juliana Rojas mostra o quanto o sistema transfere para o mercado um poder supremo de trucidar com a vida de quem por ventura cruza por seu caminho. Joana sofre por ter perdido tudo, a casa, os móveis, a plantação e os animais soterrados por uma lama tóxica vindo das mineradoras. Resta a Joana a visão do fantástico, a sombra de ver seu cavalo branco sempre à sua frente. Depois que consertar o celular, ela consegue mostrar a seu sobrinho-neto, Jaime (Kalleb Oliveira), fotos de sua antiga casa, dos bichos e das plantações, para o encanto do moleque que fica sensibilizado por tantas perdas. E não são perdas materiais, mas sim sentimentais, além da saudade do tipo de vida que levava por lá. Fica um rombo impossível de ser preenchido novamente. São fantasmas difíceis de saírem da lembrança, pedaços da vida dela que jamais serão resgatados. Mas Juliana Rojas sabe trabalhar nas miudezas de seus personagens ao edificar uma relação de aprendizado mútuo entre Jaime e Joana. Enquanto ela aprende com ele sobre as novas tecnologias e a ajuda a arrumar um emprego, ela o ensina sobre os saberes da terra e os cuidados que se precisa ter ao manejá-la. 

Já na segunda história, um casal lésbico jovem vai morar na casa herdada após a morte do pai de uma delas, no caso, o de Flávia (Mirella Façanha). O sonho de morar no mato, em uma casa longe da civilização torna-se uma promessa de felicidade e prosperidade. Só que a cada momento que passa, tudo vai se revelando dor e sofrimento. A vida do campo se mostra dura e difícil, repleta de sacrifícios e de trabalho árduo diário. Mara (Bruna Linzmeyer), a namorada de Flávia, é quem mais sente o processo de adaptação.

Se o ambiente fantástico já rondava a vida da fazenda, com Flávia vendo a imagem do pai sistematicamente, o clima onírico se instaura de vez após uma experiência que o casal tem com a Ayahuasca, levada por uma ex-namorada do pai de Flávia. Sons começam a rondar a cabeça de Flávia, e o fenômeno piora após o retorno de Mara para a cidade. O som leva o filme para uma onda sobrenatural, para um lugar onde a imaginação se mistura com os poderes da floresta. Entretanto, quando Mara volta para a fazenda tudo parece mudar positivamente. Rojas nos prepara para um grande encontro ancestral em que tudo pode acontecer e causar uma transformação profunda. 

Cidade; Campo parte, nas duas histórias, de uma realidade de luto, em que personagens precisam encontrar novos caminhos perante um passado que se impõe com muita presença, seja espiritual ou algo muito concreto. A solidariedade, as mãos dadas e o afeto dos corpos estão no filme e são exemplos de esperança em meio a um sistema impessoal que insiste em domesticar os corpos e as mentes. A resistência às forças poderosas está posta como uma estratégia também de sobrevivência e faz o filme abraçar uma ideia de terror social. O país e suas mazelas são ao mesmo tempo, pano de fundo e protagonista, pois são forças reais que impulsionam a história de Joana. Mas a história de Flávia já inspira uma esperança de reconexão com a natureza e isso é um dos grandes trunfos de Cidade; Campo e como é bom ver Juliana Rojas se apegando a um cinema humano, mágico e repleto de reflexões sobre a vida contemporânea. 

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