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FAVELA DO PAPA (2024) Dir. Marco Antônio Pereira


Texto por Marco Fialho

"O Vidigal tem uma turminha de bamba

que não esquenta com as ameaças do Rei

Se vem o mal toda favela se levanta

Se lá quem for se espanta, se vem tirar chinfra de lei..."  

                Trecho da canção Vidigal, de Sérgio Ricardo.


Apesar de ser um problema sério do Rio de Janeiro, não vemos tantos filmes que falam sobre a questão da terra e das injustiças inerentes a ela. Favela do Papa, do diretor Marco Antônio Pereira, não só resgata esse tema como o coloca numa perspectiva de luta coletiva pelo direito de morar. O documentário alterna depoimentos de moradores com imagens de arquivo para poder reconstruir a história da Favela do Vidigal, conhecida por resistir perante aos desígnios do poder governamental. 

Nessa junção entre depoimentos e arquivos somos imersos na política arbitrária do governador biônico Faria Lima e dos governos militares ávidos por vender o visual privilegiado do morro para a exploração de empresas internacionais. Marco Antônio Pereira usa das propagandas oficiais para denunciar o projeto higienista e classista das elites que queriam acabar com determinadas favelas situadas em locais estratégicos e lançar seus moradores para os lugares mais afastados da cidade. 

Marco Antônio Pereira se mostra atento ao processo de resistência popular e frisa oportunamente a preciosa participação do grande compositor paulista Sérgio Ricardo, que vai morar na favela e se torna um dos líderes da resistência às ordens de despejo emitidas pelo governo. Sérgio já era conhecido pela personalidade contestadora e de engajamento político, autor de clássicos como Zelão, Calabouço e Enquanto a Tristeza Não Vem, além de cineasta interessado nas temáticas populares em filmes como A Noite do Espantalho (1974) e O Menino da Calça Branca (1962). 

Mas no Vidigal, o autor da famosa trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963) pode experimentar na prática suas ideias de apego à noção de coletividade e solidariedade. Dentre outras ações fez músicas para a luta dos moradores (Vidigal) e realizou um show para angariar recursos com a participação de grandes nomes da música brasileira como Gonzaguinha, Chico Buarque, Zezé Motta, João Bosco e Martinho da Vila. Não bastando tudo isso, ainda ajudou a criar um bloco de carnaval para aumentar o elo entre os moradores, para o terror dos poderosos. Depois de alguns anos, já não morando mais na favela realizou Bandeira de Retalhos (2018), filme que retrata à luta por justiça e permanência no lugar, que era um direito dos moradores. 

Talvez um dos momentos mais incríveis de Favela do Papa esteja nos depoimentos colhidos em torno da filmagem de Bandeira de Retalhos. Marco Antônio Pereira flagra cenas e registra depoimentos memoráveis com Antônio Pitanga, Osmar Prado e do próprio Sérgio Ricardo. Mas a participação dos moradores resistindo contra as remoções foi mesmo o mais fundamental. Aos poucos, o fato vai ganhando relevância política, atraindo políticos que começam a abraçar igualmente a causa. O documentário detalha bem a história tensa das tentativas de remoção e a luta dos moradores. Havia um ímpeto do governo em acabar com os moradores da favela sem acabar com a pobreza, apenas removê-la para algum rincão bem afastado da cidade. Enfim, tirar os pobres das vistas dos ricos e turistas que vinham conhecer as paisagens naturais da Zona Sul carioca.

Uma das ideias mais fascinantes que essa história do Vidigal traz é a do mutirão. Desde a construção de casas, melhoria de ruas da favela até a edificação de uma capela, que marca um divisor de água da luta pela permanência dos moradores na favela contra os despejos que insistiam em acontecer. 1980 é o marco dessa luta, com a vinda do Papa João Paulo II ao Brasil e a confirmação de que ele viria fazer uma visita no Vidigal e rezar uma missa no alto da favela. Favela do Papa é um show de imagens de arquivo dessa visita ilustre, que vai garantir a propriedade das casas para os moradores do Vidigal. Um happy end inimaginável e raro na história brasileira e que merece ser contado e recontado como um ato de resistência e vitória dos oprimidos contra os opressores.  

  

   


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