Texto de Marco Fialho
Silvana Beline: o cinema que a gente sente
Em abril de 2024, a convite, fui realizar um trabalho de cinema em Anápolis, cidade do interior de Goiás, e tive a honra e o prazer de me deparar com muitos profissionais brilhantes do audiovisual da cidade, e tive a surpresa de conhecer um filme de Silvana Beline. O título do filme não era fácil de pronunciar de pronto, Diriti De Bdé Burè, mas a obra, muito pelo contrário, era de uma beleza e força surpreendentes. Lembro de ter me emocionado muitíssimo vendo esse tocante documentário. Logo me comprometi a escrever sobre o curta e quis conhecer outras obras da diretora. Eis que a própria me enviou os links e pude assistir encantado a força que esse cinema irradia. E fiquei a pensar: "porque um cinema com esse vigor e rigor estilístico não é ainda conhecido por muitos?" São as idiossincrasias de um mercado que reluta em falar e revelar novos nomes, ainda mais se o filme não tiver um apelo de marketing para atrair um público mais amplo, se estiver na sua carne a marca da resistência e da firmeza de que o mundo que temos não é o suficiente, pelo menos na garantia de direitos que estão postos na constituição brasileira.
Porém todo grande trabalho oculto, precisa ser periodicamente reconhecido e por mais que Silvana Beline já tenha recebido prêmios em festivais importantes, o seu nome ainda não é tão ventilado quanto deveria. Silvana é uma realizadora de Goiânia, capital de Goiás, e o forte do seu cinema está na abordagem, na demarcação do viés feminino, e também se destaca pelos enquadramentos, sempre precisos, que só poderiam ser escolhidos por quem olha para o mundo com um olhar muito próprio e determinado em saber o que quer mostrar.
O cinema de Silvana Beline possui uma postura inconteste. Ela sabe de qual lado está, o dos despossuídos e dos que precisam de outros iguais para se defender do poder historicamente hegemônico, dominado pelo patriarcalismo, pelos economicamente poderosos que usurparam a terra dos povos originários e que continuam o extermínio dos verdadeiros donos da terra e dos despossuídos.
Em seu último trabalho, Juvana de Xakriabá, Djuena, uma indígena da etnia Tikuna, ao falar da música dos povos originários, diz que "quando qualquer povo indígena canta, a alma da gente sente o que cada povo tá cantando". Assim, a cultura indígena brasileira se caracteriza pelo amor da alteridade, na capacidade de sentir o outro. Por isso, dessa linda fala de Djuena, vem o título desse nosso ensaio: Silvana Beline: o Cinema Que Sente. Esse título visa sintetizar muitos outros vieses do seu cinema: o da solidariedade, da sororidade, da luta engajada, da empatia, que pensadas juntas inspiram uma só coisa, a sensibilidade com que esse cinema vê os personagens que encontra. Ainda mais que o cinema dela pode ser definido igualmente como o do encontro e do estar junto, tamanha a sensibilidade na qual a diretora está a abordar as suas temáticas.
Mesmo que o cinema de Silvana Beline tenha essa força imensurável e se mostre disposto à luta, cada imagem traz igualmente um carinho extremo por cada ente que busca justiça e dignidade. Silvana põe sem medo a sua câmera à disposição das lutas, e não esquece que cada plano filmado é cinema, isto é, forma um pensamento e uma ideia sobre o mundo. Que para cada mensagem que precisa passar e defender é preciso se escolher o plano certo que levará o público à reflexão.
Por isso, a ótica de Silvana é potente, por saber privilegiar o ponto de vista necessário para narrar uma determinada história. Assim, o viés político se coaduna com o cinematográfico, pois eles se retroalimentam durante todo o processo. A princípio, nem gosto da palavra engajado, termo já bem surrado por anos de desgastes e tomado muitas vezes pelo superficial, mas creio que ele se encaixe aqui com absoluta precisão, sem os ranços de antes, pois há uma consciência, e mais, uma organicidade desse engajamento que não deixa dúvidas do quanto ele é, no mesmo peso, igualitariamente cinematográfico.
A seguir, quero analisar obra a obra desta cineasta, para que uma análise horizontalizada se encontre com uma outra mais verticalizada, e assim possamos penetrar no cerne do cinema corajoso e relevante de Silvana Beline. Esse cinema é, de certa forma, pedagógico, por clarificar os processos ideológicos existentes em cada olhar dos cineastas e o quão poderosos podem ser as imagens e os sons, que trabalham com as entranhas e engrenagens que determinam um enraizamento do político em qualquer proposta cinematográfica.
Diriti de Bdé Burè
Diriti De Bdé Burè é um filme impregnado pelo barro e pelas mãos que o moldam para o transformarem em uma genuína arte. O barro está nas ruas em que a idosa indígena da etnia Karajá vem caminhando para pegar o barco logo no início do filme. E o cinema de Silvana vai igualmente moldando sua forma, observando para aprender e poder digerir uma lição que escreverá habilmente com a sua câmera observacional. Se a nossa cultura foi paulatinamente isolando os idosos, a cineasta sabe induzir a nossa atenção para os detalhes que fazem a cultura indígena valorizar o olhar e a sabedoria inerente à ancestralidade.
Cinema é olhar, é saber como retratar o outro sem o engolir e aniquilar, mesmo que seja na melhor das intenções. Silvana Beline mostra o quanto o cuidado, o respeito e atenção ao outro pode desabrochar a beleza e fazer emergir um estado encantatório. Depois de tanta invasão, depredação, dilapidação, é natural que determinados povos originários brasileiros não queiram sabem de nós brancos. Isso é tão evidente, embora poucos cineastas tenham talento e sensibilidade para conseguir entender isso. Esse acerto de Silvana Beline, de ter a sensibilidade de saber chegar, abrir um diálogo e realizar uma obra dominada e transbordada pelo sensível, cujo respeito está em garantir a fala da indígena em seu idioma, de legendar para português cada fala poderosamente humana da protagonista.
Outra abordagem que demonstra a sensibilidade de Silvana perante à cultura ancestral dos indígenas, está no registro da relação entre avó e neta, na percepção de que nesta interação se garante a continuidade da transmissão das tradições e práticas dessas populações. Mas antes desse diálogo com a neta, tem a fala dela para a equipe, que não sabemos exatamente em que momento foi feita, pois ouvimos a sua voz em off enquanto a vemos calada no barco levando a equipe do filme rio adentro no lugar onde se encontra o barro ideal para fazer as bonecas. Essa fala está impregnada de desconfiança à nossa civilização, ao reafirmar do porquê não fala português, mas que cedeu à filmagem depois da insistência para que ela se pronunciasse sobre a sua cultura. Mas eis que ocorre um dado inusitado. Ao achar o barro, a velha indígena diz: "é aqui mesmo". Sim, ela se contradiz e fala em português, até com certa desenvoltura. Esse ato só aumenta a força dessa mulher indígena, seu semblante exala uma sabedoria que salta aos olhos, quando nos deparamos com o olhar firme dela sobre o mundo. Ao achar o local do barro na margem do rio, a felicidade toma conta da cena e o reflexo da câmera e da diretora no barro insere ambos na imagem como testemunhas fantasmagóricas da magia que está por acontecer: da mão rapidamente transformar um pequeno monte de barro bruto numa delicada peça no formato de uma criança indígena. De repente, o mimetismo infantil da imagem artesanal se equivale ao feitiço da artesania cinematográfica, ciosa por registrar um momento tão especial e tão acalentado. Estranhamente, e com poesia, elas se complementam, simbioticamente.
Contudo, a magia não para de irromper na tela. Do close da idosa, ainda no barco, Silvana Beline corte para outro close, da mesma mulher, mais nova, no passado, amamentando um bebê, enquanto em paralelo, esculpe um boneco de barro. São apenas 10 segundos dessa cena, mas o suficiente para falar de décadas a fio. É uma elipse fantástica e perturbadora, mas altamente comunicativa e expressiva. Pode-se até ousar dizer, sintética, já que essa simples imagem evoca memórias, tradições e sentimentos inspiradores.
Depois, já na aldeia, crianças aprendem a fazer a boneca e as pintá-las. São lições de ancestralidade divididas com as da educação vinda da escola, transparecidas pelos cadernos que as crianças trazem consigo na cena. A importância dos saberes tradicionais falam alto em Diriti Bdé Burè e a transmissibilidade é peça cada mais fundamental para os povos originários, constantemente perseguidos e dizimados por interesses econômicos escuso. Nessa perspectiva, a cena final adquire um simbolismo gigantesco, além de uma carga poética e de encantamento. Avó e neta estão a contemplar o pôr-do-sol e nós ficamos a admirar a beleza dessa imagem, repleta de paz e ensinamentos. Como não se fascinar ao descobrir que estamos defronte de duas bonecas: uma de barro e outra de carne e osso. São as delícias que o filme entrega para desconcertar.
Pensão Alimentícia
Quantos de nós não conhecemos aquele homem que arrega na hora de comparecer para pagar a pensão alimentícia de seu filho, deixando tudo nas costas da mulher? Sônia (Josi Campos) representa bem essa mulher que precisa se redobrar para criar duas filhas. Por mais que Sônia adoce a vida de todos com os seus doces maravilhosos, a sua própria é regida pela batalha e amargor de uma labuta sem fim, em busca de levantar uma grana para os caros remédios da filha doente.
Silvana Beline conta essa história sem perder de vista a luta de Sônia, o quanto ela corre contra o tempo e as agruras que a vida reserva para uma mãe que precisa criar os seus sem o apoio do pai das crianças e do Estado, que não lhe supre com os remédios necessários. São os abandonos parental e do Estado que recaem nas costas de Sônia e o roteiro de Silvana não se desvia um só minuto do foco da luta dessa mulher pelas belas ruas da Cidade de Goiás. Em pleno ritual do Fogaréu, lá está ela a vender seus quitutes.
O dia vai passando, chega a noite e a saga de Sônia permanece difícil, mesmo que ela se redobre em trabalhos extras, como lavar toalhas para fora. A direção de Silvana Beline é perspicaz também a registrar instantes de lazer dessa mulher, apesar da distração não vir de graça, pois os aborrecimentos estão sempre a rondar. Esbarrar com o ex no raro momento de diversão é muito bem emoldurado pelo samba, imortalizado na voz de Bezerra da Silva, "Verdadeiro Canalha" ao fundo. Essas são as filigranas que a diretora incorpora em suas cenas para enriquecê-las, um deleite só para os espectadores, um toque de sensibilidade a expandir o que o filme quer nos dizer, acrescido de humor.
Pensão Alimentícia tempera a trama com doses precisas e elegantes de comédia e drama, consegue rir da tragédia e tirar a personagem do lugar comum, a colocando no lugar da ação efetiva ao invés da mera reclamação. Não tem como ser mais afirmativo do que isso. É justamente pela sororidade, em especial pela pela colaboração da amiga Talita, que adentra na história como uma anja prestes a transformar a vida pacata e acomodada de Sônia. É nessa parceria entre Sônia e Talita que Pensão Alimentícia engata uma reviravolta daquelas, que está para além da trama, capaz de transpor uma ideia da tela para a vida.
Como um bom filme de Silvana Beline, Pensão Alimentícia reposiciona papéis sociais, e promove uma protagonista passiva em ativa, dona da sua cabeça e ações. Esse é um cinema capaz de narrar uma boa história, de causar uma reflexão fundamental e de interferir no social de maneira decisiva, objetiva e sobretudo de maneira educativa. Cada imagem produzida adquire força pelo enquadramento proposto, pelos olhares trocados, pelos afetos que precisam ser mostrados e lutas pensadas e levadas a cabo para burlar o sistema machista, que tende sempre a deixar tudo como está.
O cinema de Silvana Beline mexe e remexe com essas estruturas sedimentadas de poder por dentro, pelo exercício do cotidiano, e esse é o que o destaca e o investe de uma uma força indescritível. Só assistindo para sentir o que estou a dizer. Essa é uma obra que fala da realidade de várias mulheres, não só a de Sônia e Silvana costura com imensa camada de sensibilidade o sentir e o pensar por meio de uma narrativa envolvente e que conclama todos a sair da apatia e lutar por uma vida mais digna e igualitária, um cinema ativo e repleto de justiça social.
Sujas de Carmim
O cinema de Silvana Beline nos chama sempre a observar o mundo de modo a potencializar a vida de mulheres e o que envolve seu cotidiano. Sim, de mulheres, não das mulheres, porque o cinema dela deixa margem para diversas maneiras de ser mulher, de se sentir mulher no mundo. Sujas de Carmim explora um olhar plural, interclassista e cujo o maior ponto de encontro é o da luta. E aqui, trata-se de uma ideia de luta bem mais ampla do que a usada corriqueiramente na política, uma luta por demonstrar um amor e um carinho, por enfrentar a tudo e a todos para se despedir de um artista que amava as mulheres.
É assim que Silvana Beline encanta mais uma vez com Sujas de Carmim, ao criar um roteiro eivado pelo inesperado, pelo absurdo do amor, do ilimitado do sentimento puro que podemos carregar por um artista. E o que poderia unir uma mulher abastada a uma empregada doméstica? Essa é a pergunta que fazemos logo no início do filme e a resposta pode ser tanto o desvario quanto o amor exacerbado ou sem limites por um artista. Essa é a poética que o cinema de Silvana Beline esparrama pela tela em Sujas de Carmim. Perante uma música de entrega às mulheres e ao amor como era a do compositor e cantor Wando, somente adentrando na vida de suas admiradoras para tentar decifrar o mistério desse fã-clube tão entusiástico como é o de Wando.
Mais uma vez, Silvana investe na parceria com a atriz Josi Campos, aqui no papel da empregada explorada por uma família rica de Goiânia, um papel sob medida para essa atriz excepcional mostrar seus muitos recursos cênicos. Uma personagem sem limites na sua admiração e que vai arrombar todas as portas para poder se despedir de um ídolo. Particularmente amo a cena do karaokê no final, justamente porque essa é uma das grandes homenagens que alguém pode prestar a um ídolo seu, desafinando cantando uma de suas canções.
O cinema de Silvana Beline é de grande afinidade e intimidade com o universo feminino e Sujas de Carmim é o retrato mais fidedigno dessa imagem. Um cinema tomado pelo afeto e por descortinar o complexo sentimento de ser mulher no contemporâneo, impulsionado pela inserção da mulher no mundo do trabalho, sem jamais deixar de cuidar da família, muitas vezes em um acúmulo de funções. Mas Sujas de Carmim mostra o quanto a mulher é algo mais do que todas essas expectativas corriqueiras, ela também pode ser o intangível, o incomensurável e pode flertar com a beleza do insano. E como é admirável a disponibilidade de Silvana Beline para deixar desabrochar a alma complexa de uma mulher.
Primavera Púrpura
Em pleno Governo do golpista Michel Temer, Silvana Beline nos apresenta e acompanha Rosa, uma ativista do movimento das camponesas feministas. Esse longa documentário emana uma fascinação para quem o assiste. As primeiras imagens mostram uma mulher com o seu marido exercendo tarefas domésticas em um tipo de chácara. Mas nas imagens seguintes, vemos Rosa como ativista e estudante, como uma ativista dedicada na organização da luta das mulheres camponesas contra a fatídica reforma da previdência.
Muitas vezes, conhecemos um cineasta ou uma cineasta em duas frentes: uma pela temática escolhida, e outra pela abordagem adotada ao retratar o tema. Nos dois casos, Silvana Beline se destaca com louvor, com uma capacidade de imprimir uma narrativa que aos poucos vai nos aproximando de Rosa, e mais ainda, da sua luta pela força do coletivo e pelos menos favorecidos, em especial, as mulheres, que carregam o fardo de jornadas triplas no trabalho fora, em casa e nos movimentos sociais. O documentário Primavera Púrpura se consolida com uma estratégia envolvente, como um enredamento da atenção do espectador. Ver Rosa em ação é encorajador e traz uma ternura pelo outro que a personagem abraça e luta.
Silvana consegue montar um mosaico visual dessa organização da luta camponesa em seus meandros, desde o discurso de Rosa até o ombro a ombro do dia a dia. Aos poucos vamos adentrando nessa militância de base e conhecendo as mulheres que dividem com ela a dura tarefa de juntar o movimento de reivindicação contra a reforma da previdência, que era a pauta do momento histórico da filmagem. Sem mais, entramos nos desvãos do congresso, tomando ciência sobre a dificuldade dos movimentos sociais acessar o seu lugar de direito nas discussões e reuniões para acompanhar e exigir dos congressistas que votem pelos interesses da maioria da população, ao invés de representarem apenas grupos econômicos poderosos. Ver Rosa discursando em reuniões com as deputadas Talíria Petrone e Fernanda Melchiona é de arrepiar, pela lucidez da fala e respeito que exala.
Não me recordo de ter visto documentários que conseguem penetrar de tal forma nos movimentos sociais como Primavera Púrpura, capazes de nos tornarem íntimos de suas ações cotidianas. Silvana Beline esbanja sensibilidade ao escolher retratar Rosa, uma camponesa arretada, corajosa e que não foge da luta. Vendo Primavera Púrpura me lembrei muito do cantor e compositor Gonzaguinha, que acreditava nesse tipo de luta popular, da necessidade de todos nós assumirmos as rédeas da política e da organização. Essa energia de luta está na canção "E Vamos à Luta", que pode ser ouvida no link https://youtu.be/rZVAhpICuwc?si=JYClwGhCb-3pXX4m.
E o que dizer da sororidade presente em quase todas as cenas? A de Rosa, a de tantas outras companheiras de luta, mas também a de Silvana Beline com o seu olhar apurado, com a câmera sempre ligada para flagrar os momentos mais intensos de luta, mas também os mais ternos, os de aconchego, em que mulheres se juntam no MMC (Movimento das Mulheres Camponesas) para firmarem acordos mediados pelo afeto e desejo de transformação social. Primavera Púrpura explora diversas vertentes de uma luta que para ser mais efetiva precisa se organizar. E Rosa está lá em todas as frentes: nas ruas, espaços de poder oficializados e nos sindicatos e outros territórios de resistência popular. E Silvana resgata esse movimento quase anônimo para o cinema, o torna protagonista e o empodera. O que é a marcha das margaridas senão a síntese de todos esses afetos reunidos? É a reunião dos saberes populares, dos movimentos organizados em busca de um mundo mais democrático e inclusivo. São quilombolas e grupos étnicos indígenas, de mulheres camponesas, que almejam continuar a luta de Margarida Alves, uma líder camponesa pioneira na luta por direitos dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras.
Primavera Púrpura diz muito sobre o cinema de Silvana Beline e sobre a importância do cineasta e da cineasta em saber em qual lado está, para onde e para quem apontar a sua câmera. Enquanto vemos o filme, ficamos pensando que só uma cidadã engajada, ciente do papel que exerce na sociedade poderia filmar uma história de uma mulher do povo, colocar-se a serviço da luta e levar ao extremo o sentido da sororidade. Mas vale destacar o respeito que Silvana demonstra pelos personagens que filma, registra sem invadir, preservando o espaço de quem está sendo retratado.
Primavera Púrpura se mostra um filme intenso, vivo e que caminha junto. Interessante como a terra pode ser apontado como um elemento basilar e fundador do cinema de Silvana, um elemento simbólico da luta por um mundo mais igualitário, do qual a própria cineasta também é militante. Quando Rosa empunha a mão cheia de terra no final do filme, é disso que se está a falar e afirmar, que a luta não vai parar, ela é intrínseca ao processo da vida de quem quer um outro mundo. Primavera Púrpura é por isso, e muito mais, um filme raro, em especial por abordar o tema por dentro, de maneira participativa e solidária. É Silvana Beline revelando o quanto o caráter de quem filma pode transformar o olhar de quem assiste.
Juvana de Xakriabá
Juvana de Xakriabá é o mais recente filme de Silvana Beline. Nele acompanhamos a pesquisa de campo dessa pesquisadora indígena, que vai a campo registrar as impressões das mulheres indígenas sobre o seu papel tanto na comunidade quanto na sociedade. O filme inicia com a apresentação do TCC de Juvana na UFG (Universidade Federal de Goiás), intitulada "A Luta da Mulher Indígena - O protagonismo da sua própria história de luta e resistência".
Mais uma vez Silvana pratica o seu cinema que sente, que trata com respeito os depoimentos das diversas personagens a tentar definir os caminhos da luta indígena, que na época da filmagem, estava sob a égide do governo genocida de Jair Bolsonaro. Silvana muitas vezes mostra a câmera de Juvana a registrar as falas sensíveis dessas mulheres. A finalidade da direção não é criar um filme etnográfico, mas antes colocar o cinema a serviço da luta política desses quase 400 povos indígenas brasileiros, um cinema que se quer confundir ao tema, se afiliar e aliar ao que está retratando, apesar que retratar não é bem a melhor palavra para definir essa abordagem fílmica, mas sim algo mais no nível do participativo, do caminhar junto.
Silvana Beline aparece em alguns momentos, já que está no filme também na qualidade de professora da UFG. Juvana Xakriabá tem muitos momentos emocionantes, em especial pelos depoimentos de mulheres indígenas de várias etnias. O momento político difícil faz aumentar a emoção das falas, sempre evocando o poder de resistência dos povos e o novo papel das mulheres se juntando aos homens indígenas na luta política pelo território, pelo fim da ação assassina de grileiros, contra o desmatamento e a poluição dos rios e matança desenfreada de animais.
Com Juvana de Xakriabá, o cinema de Silvana Beline reafirma outro elemento crucial de seus documentários, o da escuta. São muitas vozes que ouvimos, todas firmes para exaltar o papel do coletivo na resistência às políticas devastadoras da cultura indígena. O poder da ancestralidade está presente nos discursos das mulheres que reafirmam a disposição à luta, de se organizarem nacionalmente para serem uma só voz pela defesa da terra.
Quando um representante do governo vai dissimular um falso debate com as indígenas, elas citam as representações no congresso, mencionam Sônia Guajajara e o tal homem branco diz que ela não sabe sequer falar, no que toma uma vaia daquelas, à altura de sua incapacidade de dialogar com as lideranças dos povos indígenas. Silvana sempre está no lugar certo e com a câmera ligada para registrar os comportamentos indignos dos donos do poder.
Acredito que várias imagens criadas por Silvana Beline nesta obra, podem facilmente contrastar e responder a ignorância e rudeza desses homens inescrupulosos, mas quero encerrar a minha análise com as imagens finais de um olhar penetrante de Juvana, agora devidamente formada na universidade dos brancos, que não podem mais tratá-las com inferioridade, pois agora estão municiadas com as mesmas armas do conhecimento do inimigo. O olhar de Juvana traz consigo a força ancestral, enquanto ao fundo ouve-se uma música indígena. Daí lembrei de imediato da fala de Djuena sobre a conexão da cultura indígena pela música e associei tudo isso ao próprio cinema sensorial de Silvana Beline. E pude sentir a força que essa pensadora Tikuna evocou lá no seu depoimento. As conexões das energias boas são bem maiores do que muitas vezes imaginamos. Me emocionei e sorri, ao mesmo tempo que uma lágrima furtiva escorreu pelo meu rosto feliz.
Poucas vezes li uma crítica tão afiada, sensível e afinada com a obra e suas protagonistas….a gente termina a leitura e quer imediatamente assistir aos filmes. Onde os encontro?
ResponderExcluirOlá Cláudia! Muito obrigado pelo seu comentário. Como a maioria dos filmes de Silvana são curtas, creio que a melhor maneira de você conseguir assistir aos filmes é entrando em contato diretamente com a própria diretora. Deixo aqui um link do perfil dela do Facebook. Um abraço.
Excluirhttps://www.facebook.com/belinesilvana?mibextid=ZbWKwL
Parabéns por retratar tão bem não só a obra como também a pessoa desta grande cineasta Silvana Beline. Ela sente e nos faz sentir, e sua obra traz grandes reflexões que são fundamentais para tentarmos tornar o mundo um pouco melhor. Alexandre Nishioka
ResponderExcluirObrigado Alexandre! A minha intenção é justamente essa, contribuir para que a artista Beline seja reconhecida pela imensa estatura artística que possui e como cidadã fantástica que é. Obrigado por ler e comentar.
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