Pular para o conteúdo principal

GREICE (2024) Dir. Leonardo Mouramateus


Texto por Marco Fialho

O cinema de Leonardo Mouramateus vem se dividindo entre Brasil e Portugal, e Greice, seu mais novo trabalho não é diferente, pois a própria história já engendra a presença tanto de Fortaleza quanto de Lisboa. O espectador é instado a seguir a personagem-título, uma jovem que estuda escultura em Lisboa e que tem como hábito ficcionalizar os fatos de sua vida, tanto os do presente quanto os do passado. Mouramateus adota o ponto de vista de Greice (Amandyra em ótima interpretação) e assim, dentro da camada ficcional, uma personagem tem a liberdade de reinventar a sua própria história. Greice não deixa de ser isso, uma complexa composição de camadas de ficcionalização, tendo sido escolhida a comédia como uma forma estilística para que se possa rir do fato narrado. 
 
Mouramateus mixa habilmente uma certa formalidade portuguesa com uma informalidade brasileira e isso causa um desenho narrativo desigual e desconcertante. As línguas podem até ser semelhantes, mas tudo é trabalhado de forma a se sublinhar um estranhamento advindo desse choque cultural. Como nada de praxe, não há legendas para as falas do português de Portugal e isso agrava as diferenças evidentes entre a ex-metrópole e a ex-colônia. O formato cômico serve para salientar as diferenças. Greice conhece o namorado português em um lance de esperteza, mas realmente só compreende o seu caráter quando ela o assiste dando uma volta nos seus meios-irmãos brasileiros. Assim, a traquinagem e o trambique estão a guiar os comportamentos dos personagens. 
 
Tudo em Greice sugere uma vida contemporânea fluida, talvez, sinais dos tempos, vai saber. Mas o surpreendente é como essa ideia de traquinagem instala-se na própria concepção do filme. Como em outras obras de Mouramateus, tudo parece ser movido por um jogo, uma espécie de quebra-cabeça narrativo. Se isso leva o filme para uma certa rigidez, por outro lado, o cômico indica contraditoriamente a desconstrução dessa proposta hermética posta no roteiro.   
 
Greice é um filme, por assim dizer, movediço, onde espectador é colocado em um terreno entre descobertas e desmentidos. Mouramateus sabe se aproveitar das mentiras de Greice para brincar com a temporalidade do filme, já que diversas versões da mesma história vão se moldando tal como uma escultura. Logo no início, somos postos consecutivamente em três tempos diferentes, tendo sempre Greice como elemento central da narrativa. 
 
Gosto de pensar o quanto Leonardo Mouramateus propõe a narrativa de Greice com a mesma fluidez na qual trata as relações contemporâneas. A maneira nada clássica em que amarra as sequências, com interpenetrações enviesadas e repleta de fusões, em especial, as que mudam o ambiente de Fortaleza para Portugal criam uma continuidade na maioria das vezes guiada pelo próprio movimento corporal de Greice, um pequeno cuidado que o diretor cuida para que as temporalidades conversem permanentemente.

Quero voltar à ideia de fluidez para discutir o quanto Mouramateus dirige seus atores, atrizes e trata suas personalidades de maneira transformadora, como se a vida fosse sempre possível de ser engendrada a cada novo momento. Há uma filosofia mesmo, um moldar a vida a cada nova situação. Greice ficcionaliza sua vida para os outros, sua maleabilidade permite que a reinvente a seu bel-prazer. São personagens que igualmente estão a flutuar pela vida e abertos a mudarem seus papéis no mundo. 
Greice é mais um acerto de Mouramateus, embora ainda não seja a sua grande obra, que parece está sendo devidamente edificada filme a filme pelas suas narrativas sempre originais.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras di...