Texto de Marco Fialho
O que mais me agradou em "Caminhos Cruzados" é o quanto o diretor sueco Levan Akin vai conduzindo a sua história paulatinamente, de modo a nos envolver cena a cena com a sua proposta. Se por um lado, os personagens vão criando laços entre si, nós vamos igualmente sendo sugados por uma narrativa aparentemente despretensiosa, mas com uma imensa capacidade de enredar a quem assiste. E isso é, por si só, fascinante e recompensador.
O cinema de Levan Akin (do ótimo E Então Nós Dançamos) é dos afetos em meio ao rascante mundo que vivemos. É curioso como a câmera de Akin está sempre na mão, inclusive quando poderia estar fixa em um pedestal, o que me incomodou em algumas cenas, ver a câmera balançando quando algum personagem estava sem sair do lugar. Embora considere que a câmera na mão de Caminhos Cruzados, antes de tudo, instale um desejo de estar junto a cada personagem, uma vontade de cumplicidade e companheirismo.
Quando Dona Lia (Mzia Arabuli) chega na porta da família do jovem georgiano Ichi (Lucas Kankava) à procura de sua sobrinha Tekla, uma garota trans que "desgraçou" e "desonrou" a sua família para virar uma errante na vizinha Istambul (Turquia), um buraco se abre para as incertezas e o imprevisível, afinal Ichi se aproveita da situação para respirar da vida que leva junto aos seus. A partir da ida de Lia e Ichi para Istambul somos arremessados ao imponderável, e ainda mais, à aventura em torno do desconhecido. Istambul é o cenário ideal para Caminhos Cruzados, com seu cosmopolitismo a engolir tradições e apta a incorporar novas formas de viver e ser.
Para procurar a sobrinha trans, Lia precisa mergulhar nesse universo, nos bairros onde a prostituição serve de meio de vida para os corpos marginalizados pelo sistema. O interessante é que paralelamente a Lia e Ichi, a narrativa se abre para Evrin (Deniz Dumanli), uma advogada trans que auxilia outras meninas necessitadas de ajuda perante à lei. Inicialmente, somos induzidos pela narrativa a achar que a personagem Evrin poderia ser a desaparecida Tekla, por motivos bem óbvios. Contudo, aos poucos vemos que não, em especial quando menino e senhora chegam até Evrin, que passa a seguir o paradeiro de Tekla. Será que Tekla anseia ser encontrada? Essa é a pergunta chave que Evrin lança para Lia.
Entretanto, como qualquer aventura que se preze, o mais importante não é exatamente chegar a um objetivo específico, e sim usufruir da viagem, do aprendizado que ela pode preparar a cada esquina percorrida. E, se inicialmente, julgamos que Ichi receberá os maiores ensinamentos, logo o engano vai sendo descortinado. Lia é quem mais tem chances de mudar a sua visão sobre o mundo. Ao conviver com Evrin, Ichi e tantas outras personagens trans que encontra pelo caminho. Levan Akin coloca a sua câmera à mercê de Lia, como se a pegasse na mão e a levasse para aprender sobre a importância de ser humano na diversidade. E o que dizer da interpretação de Mzia Arabuli, um vulcão em cena, numa entrega apaixonada pela arte de representar.
Mais do que discutir gênero, Levan Akin discute relações e afetividade. Há criatividade na abordagem, tanto que o filme foi agraciado com o Teddy (famoso prêmio LGBTQIAPN+) no Festival de Berlim. É Lia com Ichi, um confronto de gerações, é Lia com Evrin, uma relação entre gêneros iguais, mas que para Lia a princípio era muito diferente. A de Lia consigo mesma, na dura e árdua lição de se ver não mais como uma mulher jovem. E de Lia com o mundo, que se mostra hostil em sua impessoalidade, mas ainda capaz de trazer novas relações com grupos sociais que jamais imaginaria conviver e amar. A cena que Akin constrói de Lia dançando junto com Ichi e Evrin é uma das mais belas que vi nos últimos anos, pela extrema sensibilidade e significado que ela exala.
Levan Akin, finaliza Caminhos Cruzados de maneira retumbante ao misturar sonho e desejo de reconexão de Lia com o seu tempo. Mais do que com o mundo, Lia emerge de Istambul uma outra mulher, conciliada com o presente e o passado, e com outra perspectiva para o porvir. O abraço imaginário em Tekla perfaz um ideal humanitário necessário. É política identitária? É óbvio que sim, embora também seja cinema da mais alta estirpe, que mexe com emoções e pensamentos comuns ao nosso tempo, chacoalha tudo o que tem direito para narrar uma história que vale à pena conhecer e compartilhar.
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