Texto por Marco Fialho
A primeira coisa que quero dizer a respeito de A Música Natureza de Léa Freire é um agradecimento ao diretor Lucas Weglinski (Máquina do Desejo - 2021), por nos descortinar uma preciosidade do quilate de Léa Freire. Como vivemos todo esse tempo sem saber da existência dessa música e compositora extraordinárias, de sua verve e entrega absoluta à vida e à música. Aqui vemos a ideia de documentário atingir um dos seus grandes propósitos, o de revelar algo de novo, ou pelo menos, nos despertar para um ângulo diferente acerca de um personagem ou fato da história. Nesse caso, o de Léa Freire, nem se trata propriamente de um resgate, já que sequer a mesma possuía antes uma mínima projeção midiática. Esse filme é sobre a nossa capacidade como país de não valorizar pessoas fantásticas, que deveriam ser discutidas em um patamar altíssimo.
Surpreende, e muito, esse apagamento, não só pelo fato de Léa Freire ser uma mulher, mas sobretudo por ser uma compositora e instrumentista, e sendo, em ambas as frentes, absolutamente genial. Lucas Weglinski dá uma cartada exemplar, inclusive pela forma como constrói a sua narrativa, tomada pelo envolvente e por uma argúcia impecável. O diretor trabalha a infância promissora, cheia de imagens belas, referentes e fortes que mostram a precocidade de Léa como instrumentista, talento herdado diretamente da mãe, uma pianista irretocável, segundo a própria. Acompanhamos esses fatos estupefatos, até que descobrimos que Léa Freire rapidamente se enfronha com os gigantes de sua época, tocando uma flauta sublime, com improvisos compatíveis aos mestres da nossa música.
Se Léa como música é perfeita, como compositora é gigantesca, e Lucas Weglinski dá o tiro certo com esse documentário, que desde já se torna um filme obrigatório para qualquer estudioso que queira falar sobre a música do Brasil. Léa Freire é uma espécie de síntese do que somos, do espírito cultural multifacetado do nosso povo, consegue condensar e ir além, propondo uma nova forma de interpretar a beleza e o caos que somos. Que coisa rara de se ver atualmente, alguém que esquadrinha pela música a alma de um país, de uma cidade, enfim, uma artista que nos faz pensar acerca de como somos constituídos e tudo através do som que produz. Se isso não é factível de inebriar, que outra coisa poderia prover tal sinergia?
Alaíde Costa, Filó Machado, Johnny Alf e Zimbo Trio estão entre os nomes que Léa Freire dividiu palco, parcerias e amizade, em plena efervescência bossa novista, lá no início da carreira. Lucas Weglinski mistura depoimentos atuais com outros de arquivo e vai amarrando uma narrativa contagiante, que lentamente revela os talentos e graças musicais de Léa Freire. Vai nos apaixonando por ela, por sua maneira peculiar e simples de expressar talento e graça. A montagem criativa aos poucos distingue o trabalho complexo da compositora, apresentando trechos suculentos de suas músicas, às vezes executados pela própria, e em outras, por músicos igualmente estupendos.
Lucas Weglinski filmou parte do filme na pandemia do Coronavírus, mas se esforça para que o peso psicológico do contexto não atrapalhe o principal, o de explorar a capacidade indelével de sua protagonista, e consegue. A Música Natureza de Léa Freire está para o terreno do imprescindível, do filme que precisa ser visto por todos os brasileiros. O tal mito do brasileiro vira-lata perde inteiramente o sentido diante desse documentário. A grandiosidade do talento de Léa Freire é algo do campo do inquestionável. Os momentos de maior intimidade, ainda sim, mostram justamente o quanto a vida de Léa Freire é inteiramente dedicada à música. É tocante demais tal obstinação.
Assim que o filme termina, temos a certeza de que acabamos de conhecer uma das maiores compositoras brasileiras, pedindo aqui desculpas para Villa-Lobos e Tom Jobim. A obra de Léa Freire contempla elementos que ambos dos geniais compositores buscaram a vida toda, a de reunir na mesma composição o binômio erudito-popular. Se Villa-Lobos tendeu mais para incluir elementos populares na sua música erudita, Tom Jobim fez o inverso com a canção popular, a tingindo com toques eruditos. Léa Freire não. O que ela faz é literalmente misturar ambos de maneira que fiquem ao mesmo tempo reconhecíveis e irreconhecíveis. O seu hibridismo é absoluto, sem contar o quanto de jazz ela também contagia o seu som. Ouvir a sua música é um raro momento de beleza alentadora, nos reconhecemos ali tal quando entramos na familiaridade de nossa casa.
Outra sonoridade que está presente em sua obra é a da cidade de São Paulo. Léa Freire dedica parte de suas composições a incorporar sons eivados de urbanidade, emulações de sirenes, buzinas e outros barulhos típicos de uma cidade que não para de crescer. A noção de harmonia e como as notas musicais adentram nela é algo sublime. Contudo, o viés urbano se mostraria igualmente em sua passagem por Nova York, onde frequentou mais o clube de jazz do Village Vanguard do que as salas de aula da prestigiosa UC Berkeley. E essa passagem por NY apenas fez com que Léa Freire aprofundasse uma imensa certeza que já possuía na alma, a de ser uma grande apologista do improviso na música, e não se furtava a um só momento de inserir essa prática jazzística em seu trabalho.
Outro acerto de Lucas Weglinski na direção, é quando ele sublinha em diversos pontos da narrativa o fato de Léa Freire ser uma música e uma compositora mulher em meio a um universo dominado pelos homens, em especial o da composição. Léa Freire fala o quanto teve que ouvir acerca de sua atividade como compositora, do quanto se duvidou sobre a autoria das músicas que compôs. Outras músicas mais jovens também comentam o mesmo aspecto, do difícil reconhecimento pelo simples fato dela ser mulher. Lucas não deixa escapar esse viés socialmente importante, de entender a obra e o trabalho da compositora mergulhados em seu devido contexto, lutando contra ele e se impondo no difícil reconhecimento como compositora.
A Música Natureza de Léa Freire emociona em vários momentos, seja pela execução de tantas músicas refinadas, seja pelos encontros, inclusive com muitos artistas estrangeiros que tratam Léa Freire como uma compositora referencial, genial e ilimitada. Ela ainda não pode ser vista apenas como uma compositora e música brilhante (o que já seria fora de série), mas se destaca por uma ampla atuação como produtora, capaz de criar uma gravadora (Maritaca discos), gerir um projeto social (Projeto Guri) para fomentar novos artistas na música. Além de artista genial, Léa Freire se destaca como cidadã exemplar, ciente de que a música não pode ser privilégio de apreciação de uma elite, precisa alcançar o máximo de pessoas, para que a plateia aumente com o passar dos anos e os novos talentos também.
O que Lucas Weglinski realiza com A Música Natureza de Léa Freire é da ordem do extraordinário pelo impacto que ele produz em dois vieses, um por trazer à tona algo que já deveríamos conhecer há muito tempo, e outro, por mostrar o quanto negligenciamos com os nossos talentos, não só os desprezando como os condenando à indiferença. Deve ser por isso, que o diretor quase sempre põe a câmera em seu rosto e mãos, provavelmente por querer imprimir o encantamento que a arte exala por meio da presença de Léa Freire.
Entretanto, esse documentário não deixa de ser uma forma de colocar o trem nos trilhos, de pleitear o reconhecimento de uma artista que com anos de trabalho, e com mais de 60 anos de idade, jamais teve a merecida projeção, algo surpreendente e caótico e que infelizmente é rotina em nosso país. Por isso mesmo, essa é uma obra que deveria ser vista por muitos brasileiros. Uma ode à beleza que só uma artista brasileira poderia ensejar. Obrigado Lucas por nos propiciar esses momentos iluminados por essa música extasiante de Léa Freire. Antes tarde do que nunca.
Genial!!!!! Que texto!!!! Brasil, mostra a tua cara!!!!!
ResponderExcluirMarco, assisti o filme ontem e li sua crítica hoje, agora. Ela é tão boa, reveladora e rica, quanto Léa e o proprio filme. Dizia-se, à altura de... Obrigado.
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