Texto de Marco Fialho
Uma Família Feliz, dirigido por José Eduardo Belmonte, é uma das boas surpresas do cinema brasileiro de gênero. Aqui o suspense encontra o terror, em uma trama que tinha tudo para ser leve e tranquila. O título habilmente camufla o real sentido do roteiro de Raphael Montes, também autor do livro que deu origem ao filme.
Logo no início, vemos Eva, a personagem de Grazi Massafera (em excelente interpretação), enterrando um corpo que parece ser de uma menina e logo a seguir conduzindo um carro em alta velocidade na contramão, com uma menininha no banco de carona. Em seguida há um corte, e voltamos ao passado para enfim sabermos como a história chegou ao ponto de tamanha tensão das primeiras imagens. É sempre bom ver o flerte do cinema brasileiro com gêneros tão pouco explorados por aqui. Uma Família Feliz, vista a partir desse prisma, adquire um novo olhar como obra, o da coragem de encarar um longa com um tipo de abordagem diferenciado. Um aspecto que me chamou a atenção foi o da direção de arte, do quanto ela permite que a trama nos iluda, por criar uma atmosfera lúdica e enganadora.
Pode-se dizer que o mais interessante em Uma Família Feliz é o quanto o diretor Belmonte omite ou não revela informações sobre a história narrada. Cena a cena vamos sendo levados à dúvida, sem saber dados fundamentais que nos prendem à tela. Essa família que a princípio parece perfeita, um casal branco, ela grávida, com duas filhas gêmeas, que depois descobrimos que são fruto de um casamento anterior de Vicente (Reinaldo Gianecchini), cuja esposa morreu em um acidente de barco.
A trama se complica quando as meninas aparecem machucadas e o casal fica desesperado com o fato, apesar da culpa recair em Eva, depois que fotos das marcas de agressão são divulgadas em um grupo de WhatsApp do condomínio. O caos se espalha e Vicente passa a desconfiar de Eva, abalada por uma depressão pós-parto. Tudo piora mais ainda quando o bebê também apresenta marcas de agressão no corpo.
Belmonte sabe como filmar tais acontecimentos, apostando sempre na dúvida, afinal, todos os envolvidos poderiam ter cometido tais agressões. O diretor coloca os fatos em evidência, mas jamais apresenta alguém os executando, o que gera uma tensão permanente. Seria o pai a cometer tais disparates, a abusar das filhas? Ou seria um problema de aceitação da madrasta perante às meninas? Mas poderia ainda ser uma das meninas, afinal uma delas possui uma doença e o seu físico definha a olhos vistos. Em um mundo de crises, onde as personalidades são tão frágeis, como saber de qual síndrome estamos a ver e interpretar?
Mesmo que Uma Família Feliz privilegie mais a criação do suspense, no que se sai muito bem, do que as discussões interessantes que povoam a trama, ainda assim, o filme vale por investigar uma abordagem de mistério e abre uma discussão interessante sobre maldades provocadas por carências afetivas e doenças mentais típicas de uma sociedade que estimula em excesso o prazer e o egocentrismo. A complexidade dos comportamentos humanos em sociedade necessita de mais estudos e atenção e temos vários exemplos na vida sobre como estamos vulneráveis em relação à saúde mental.
Creio que o filme abre um caminho para se discutir sobre as relações multifamiliares, cada vez mais comuns, de pais e mães com filhos de outros casamentos, de pais que resolvem casar novamente para formar uma nova família a partir de uma outra anterior. É um assunto complexo que o universo ficcional traz à baila e que vale à pena se debruçar e conversar sobre ele, inclusive sobre a bondade inata das crianças. Uma Família Feliz possui a coragem de encarar o tema e pode ser um poderoso instrumento para abrir terreno para um diálogo super importante e que envolve a muitos.
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