Texto de Marco Fialho
Antes de começar meu texto sobre o documentário Eu Sou o Samba, Mas Pode Me Chamar de Zé Keti, quero registrar um adendo aparentemente desimportante, mas que acho importante mencionar. Meus pais, Renato Fialho e Soeli Fialho foram muito amigos de Zé Keti. Ele foi diversas vezes na minha casa, assim como meus pais também o visitaram muito no conjunto dos músicos onde morava. A filha dele, a Geisa, que aparece no filme também na qualidade de cantora, é ainda amiga dos meus pais. Enfim, assistir a esse documentário me acendeu lembranças marcantes e alegres de uns 20 e poucos anos atrás. Isso é só um parênteses, prometo não mais tocar no assunto e analisar o filme de Luiz Guimarães de Castro com o maior prazer, como faço com todas as minhas críticas, mas considero importante pontuar esse comprometimento emocional com o tema do filme.
Eu Sou o Samba, Mas Pode Me Chamar de Zé Keti, do diretor Luiz Guimarães de Castro, impressiona por mostrar um painel amplo tanto da capacidade artística do compositor carioca quanto por alcançar a personalidade do cidadão Zé Keti. O diretor opta por contar a história e mostrar as canções a partir de um painel que mistura a própria voz de Zé Keti como também dos seus familiares e amigos.
O documentário não fica restrito às imagens de arquivos, se abre ao presente e não foge das ruas e bares, ambientes ideais para narrar a história de um homem oriundo das classes mais pobres. Sua mãe foi uma empregada doméstica, que trabalhou muito para sustentar o compositor portelense. Luiz Guimarães de Castro acerta quando traz esse universo popular do subúrbio carioca, do trem e das rodas de samba para dentro do filme.
Eu sou o Samba... trata o personagem dentro da tradição do samba, como um universo que abrange uma grande família, com elos que possibilitam amarrar gerações do passado com as do presente e futuro, com a presença do genro Onésio, dos netos, sobrinhos e filhos como continuadores culturais do legado que vem de uma história de resistência africana no Brasil. Zé Keti é mais um artista que faz as dores do cotidiano se transformarem em uma bela música, que na maioria das vezes foi um samba mesmo.
À riqueza musical do documentário é acrescida uma camada visual bem interessante, como nas partes onde convidados cantam a música de Zé Keti acompanhados por uma banda. Nesse ambiente há um telão que funciona como uma janela interativa entre as músicas e o que é projetado nele, como imagens de trens e de filmes, sempre a somar uma camada a mais e uma textura diferente ao que estamos vendo. O telão funciona então como um filme dentro do filme, um elemento a criar um diálogo entre o primeiro e o segundo planos.
Por mais que o filme traga muitos convidados de qualidade, nada se compara ao fato de vermos o próprio Zé Keti contando as suas histórias fantásticas de como conheceu os sambistas da Mangueira, como Cartola, Nelson Cavaquinho ou Nelson Sargento. Ou ouvir como ele rebatizou Paulo Cesar Farias como Paulinho da Viola lá no início da carreira. São histórias impagáveis de boas, contadas com uma naturalidade de quem jamais imaginou o sucesso. Mas a fama abraçou esse portelense que foi muito além do samba, que ganhou o cinema e alcançou a Zona Sul com o espetáculo Opinião, inspirado nas suas músicas com forte conteúdo social e político.
Para mim, um dos maiores momentos de Eu Sou o Samba... é quando o diretor abraça o próprio cinema e aborda a poderosa e intensa relação de Zé Keti com a sétima arte. E o grande acerto aqui é o de relacionar o compositor a Nelson Pereira dos Santos. Rio Zona Norte (1957) e Rio, 40 Graus (1955), inclusive trabalhando como ator nesses filmes. Ainda a destacar a participação de Zé Keti em A Grande Cidade (1966), de Caca Diegues. Esse foi um fato insólito e particular do cruzamento do samba com o Cinema Novo e foi Zé Keti o sambista que realizou esse grande feito.
Confesso que de início, a montagem de Eu Sou o Samba me chocou. Luiz Guimarães de Castro (cujo um dos ofícios no cinema é também o de montador) realiza um trabalho bem arriscado ao misturar temporalidades e não se prender à cronologia. Ainda na parte inicial do filme, se dedica à morte de Zé Keti trazendo diversas reportagens de jornais da época. O diretor (que também monta o filme) lança mão de uma ideia de montagem anárquica, eu ousaria dizer até rebelde, uma desordem do tempo, que aos poucos se mostra eficaz, pois acabamos mergulhando no personagem independente do filme está seguindo uma ordem temporal ou não, afinal, tudo hoje em dia é legado, ao mesmo tempo que é presente, pois os sambas estão aí sendo cantados nos botecos da vida.
Acender a Vela, Diz Que Fui Por Aí, A Voz do Morro, Malvadeza Durão, Máscara Negra, Opinião, Leviana, Mascarada, Nêga Dina, O Meu Pecado e tantas outras canções e sambas maravilhosos estão presentes no documentário, às vezes entoadas pelo próprio Zé Keti, e outras levadas por Geisa, Mariana Baltar, Paula Santoro e Ilessi. A simplicidade das gravações, com músicos que sabem dar conta dos arranjos, faz muito bem ao filme por ser muito fiel à personalidade de Zé Keti. Afinal, nada como ouvir as músicas para se ter certeza da importância de Zé Keti para a música brasileira.
Um viés interessante de Eu Sou o Samba... é não tentar explicar muito, chamando especialistas para ratificar a qualidade da obra. Luiz Guimarães de Castro é bem feliz ao deixar os amigos, familiares e o próprio Zé Keti a falarem livremente sobre a obra e a personalidade do compositor, sem endeusá-lo ou se esforçar para ele ser algo maior. Aqui Zé Keti foi retratado de maneira honesta, direta e sem grandes rodeios, o que acabou sendo a sorte de nós espectadores.
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