Texto de Marco Fialho
Infelizmente é muito comum no universo de distribuição brasileira, a mudança radical de um título de um filme, o descaracterizando por completo. É o caso de Assassino Por Acaso, cujo título original é Hitman, isto é, Assassino de Aluguel. Essa simplicidade, ou o fato do original ser tão direto tenha desagradado aos distribuidores brasileiros, ou ainda considerado pouco atrativo comercialmente. O cartaz que está sendo usado como divulgação do filme aqui no Brasil também optou por uma imagem bem boboca, com a intenção de atrair um público afeito às comédias.
Entretanto, a verdade é que Assassino Por Acaso é um filme difícil de classificar, pois não é propriamente uma comédia, nem tampouco uma aventura, embora esbarre aqui e ali nesses dois subgêneros da ficção, além de se apoiar igualmente em elementos do filme policial e até do noir. O maior mérito de Assassino Por Acaso está no seu roteiro clássico perfeitamente bem-acabado, como é bem o feitio do diretor Richard Linklater, responsável pela cultuada trilogia do Antes (Antes do Amanhecer [1995], Antes do Pôr do Sol [2004] e Antes da Meia-Noite [2013]).
Assassino Por Acaso não é aquele filme onde se assiste para admirar alguma surpresa técnica ou narrativa, nada nos surpreende e essa é a intenção de Richard Linklater, realizar uma obra dinâmica, divertida e surpreendente no roteiro, escorados em códigos de subgêneros cinematográficos muito bem azeitados e tomados de assalto. O melhor de Assassino Por Acaso é como se explora a dubiedade do protagonista Gary Johnson/Ron (Glenn Power em atuação irrepreensível), um personagem rico em possibilidades, um misto de professor de filosofia, policial e pretenso matador de aluguel.
Logo no início, o diretor informa na tela que a história é somente parcialmente verdadeira, fato não tão comum, já que a maioria dos filmes colocam baseado em fatos reais ou a partir deles, mas nunca havia lido parcialmente verdadeiro. Essa ambiguidade está no cerne de Assassino Por Acaso e toda a diversão de assisti-lo está envolto nessa perspectiva, que de saída mostra-se muito cômica e misteriosa. O que então é verdade nessa história e o que não é? A princípio, a participação de Ron/Gary nas mortes, mas creio que isso se torna irrelevante no decorrer do filme, afinal isso é cinema e pouco importa a parte que é ficção ou a que supostamente não é, porque para nós tudo é ficção e ponto final.
Adorei poder reconhecer em Assassinos Por Acaso uma influência bem gritante das narrativas de Woody Allen, outro diretor que ama misturar os subgêneros cinematográficos. Linklater se utiliza da narrativa em voz over do protagonista Gary Johnson para adicionar uma camada de humor refinado no filme, tal como Woody Allen sempre o fez. E o que dizer da trilha assentada no jazz, tal como ritualmente sempre povoou não só os créditos iniciais como os finais e quase toda a narrativa do mestre de Manhattan? São todas citações muitos felizes e propositais de Linklater, que com certeza o fez como homenagem a Woody Allen.
É impressionante o quanto Richard Linklater se utiliza dos subgêneros como o do filme Noir para inserir pitadas cômicas na sua obra. A personagem Madison (Adria Arjona), a esposa de Ray (Evan Holtzman), um abusador violento e viciado em drogas, é o típico de uma femme fatale noir, um luxo de mulher, sedutora de Ron/Gary e de toda a plateia. É a famosa beleza enganadora, fútil, com uma dose poderosa de perversidade e capacidade de matar. Ela consegue fazer com que Gary não realize seu trabalho como falso matador, o que a levaria diretamente à prisão. Só que Ron, o personagem que Gary assume para ela também é um embuste e tudo isso vira uma trama rocambolesca e divertida. As camadas de falsidade a todo instante permeiam o filme, o levam sempre para novos lugares, um preciosismo literário inspirador, com certeza. O texto de Assassino Por Acaso é classicamente lapidar e os coadjuvantes são brilhantes e muito bem desenvolvidos, caso de Jasper (Austin Amelio), o policial eficiente e contraditório, repleto de problemas com a ex-esposa, com bebidas e outras questões, uma joia de personagem e interpretação.
Mesmo que Assassino Por Acaso, não arrisque tanto cinematograficamente, tem lá seus momentos mais arriscados, em especial quando Richard Linklater rápidos frames de filmes antigos como documento histórico na sua narrativa, ao mostrar diversos casos de filmes policiais que trabalharam com o falso policial. Essa maneira de citar os filmes por imagem é bastante mostra-se a capacidade criativa e divertida de Assassino Por Acaso, de como consegue brincar com o cinema com leveza, sem esquecer de mencionar diretamente várias influências que a obra assimilou.
Assassino Por Acaso pode sim ser visto como um filme sobre farsas, sobre papéis sociais que nem sempre conseguimos manter de pé durante 24 horas consecutivas. É um filme ainda sobre o poder da sedução e o quanto podemos nos lascar por não sustentar uma determinada postura que certos ofícios nos obriga. Assassino Por Acaso pode ser lido também como um filme sobre a imprevisibilidade, de como podemos ser surpreendidos pelos acontecimentos da vida. Mesmo admitindo que Assassino Por Acaso não seja uma obra transgressora, de grande impacto visual ou de linguagem, devemos reconhecer os grandes acertos que o diretor Richard Linklater obteve por meio de um roteiro exemplar rodado com uma simplicidade narrativa que sublinha e executa todas as qualidades que uma história pode ter, até mesmo as suas pitadas de mentira. Ou seriam de verdade?
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