Texto de Marco Fialho
Um Dia Nossos Segredos Segredos Serão Revelados é um filme sobre o desmoronamento em vários níveis. A diretora Emily Atef monta sua história em 1989, à época da reunificação alemã e filma tudo como uma grande metáfora de um momento que trouxe a um só tempo esperança e angústia, em especial para quem vivia na Alemanha Oriental.
Emily Atef realiza um filme maduro, muito bem alinhavado, e demonstra muita habilidade e inteligência narrativa. A história vai se revelando sempre com muita paciência, em um conta-gotas narrativo impressionante. A diretora arquiteta o tempo ao seu bel-prazer, o manipula seguindo as regras do território na qual o filme se passa, uma pequena fazenda na Alemanha Oriental, habitada por uma família que possui um pequena venda para os habitantes locais e luta muito para manter uma vida simples, mas razoável numa sociedade em que as dificuldades econômicas são muitas.
A diretora também capricha na captação de cenas em que se pode perceber afloramento do desejo em cada encontro entre a protagonista Maria (a belíssima Burow), de 19 anos, e Henner (Felix Kremer), um solitário e rústico fazendeiro de 40 anos que sabe lidar com os animais (e mulheres, segundo se propaga na vizinhança). Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados é narrado sempre a partir das vivências de Maria, não como uma narradora onisciente, mas com uma câmera disposta a mostrar aquele mundo de 1989 pelo seu viés, o que enriquece muito a história e a torna muito coerente. Talvez, nesse aspecto, o fato de ser uma diretora, ao invés de um diretor, ao que tudo indica, tenha privilegiado uma perspectiva inteiramente feminina, o que nesses filmes românticos, normalmente recai majoritariamente por uma visão masculina da história contada.
A mise-en-scène instaurada por Emily Atef é ditada por uma simplicidade sofisticada, com uma câmera na mão que consegue não atrapalhar o desenvolvimento tanto da história quanto da construção dos planos, já que ambos se equilibram por uma dilatação do tempo em cenas de sexo que normalmente são aceleradas ou entrecortadas habitualmente nos filmes. Em uma época de grandes transformações sociais vemos a descoberta de um furor sexual improvável, filmado em detalhes no surgimento dos desejos incontroláveis, embora vividos sem pressa, com uma ênfase muito bonita na troca de olhares abundantes e expressivos, sem música ao fundo, apenas com os sons captados no ambiente, inclusive a respiração e os suspiros audíveis muito bem explorados no calor da cena. A fotografia de Um dia Nossos Segredos Serão Revelados colabora muito com a ideia de tempo estendido e impõe momentos primorosos ao filme, como no primeiro dia em que Maria adentra na casa de Henner e na janela ela é pura luz enquanto ele, vindo por trás, é fotografado nas sombras. Esse contraste inicial vai se afirmando cena a cena, assim como vários insistentes ângulos em que Maria é filmada em contra-plongée e Henner em plongée.
Mesmo reconhecendo que o sustentáculo do filme está na história entre Maria e Henner, a diretora consegue construir todo um alicerce histórico que torna esse enredo mais consistente e simbólico, ao permitir que haja um diálogo entre personagens e o mundo a sua volta. Emily Atef incorpora a época em dois sentidos, um pela volta de Harmut (Christian Erdmann), filho que fugiu para a Alemanha Ocidental, fez carreira e virou um homem de posses e bem-sucedido; e outro pelas viagens de Johannes (Cedric Eich), o namorado de Maria, que está em busca de se afirmar com suas fotografias artísticas na Alemanha Ocidental, tentando ingressar em uma universidade em Leipzig. Por meio de Harmut podemos ver como cada Alemanha se relaciona com os seus habitantes. A possibilidade de enriquecimento pessoal está na Alemanha Ocidental, por mais que essa ideia possa até parecer meio engessada e simplificada no filme. Já Johannes reafirma a ascensão pelo estudo na Alemanha Ocidental. Há ainda umas cenas rápidas numa cidade grande da Alemanha Ocidental, que Maria faz ora com o namorado ora com o amante, que revelam um desenvolvimento capitalista afrontoso para aqueles que vivem modestamente em um ambiente rural, bem próximo do rústico. A cegueira de Johannes pelo futuro, o cega e o aliena no presente, outro artifício que pode ser considerado um pouco forçado engendrado na trama de Emily Atef.
Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados consegue se estabelecer como uma metáfora bem consistente de uma época em que as diferenças econômicas entre as duas Alemanhas era gritante. Tem uma cena em que a família de Johannes discute com Harmut o quanto que a maneira abrupta que ocorreu a reunificação alemã, criou um problema por não se ter um processo de transição de um regime para o outro. Mas é incrível como cada personagem vai expondo a sua desintegração, o seu desmoronamento. Emily Atef costura com muito afinco cada camada que vai dando densidade ao seu filme. A solução final apenas ratifica uma ideia que a diretora sedimentou cena a cena: uma tragédia anunciada. E o mais interessante é que as fraturas herdadas dessa tragédia se dão tanto no individual quanto no coletivo, mesmo que a diretora não revele nada sobre o futuro da maioria dos personagens, ou mesmo do país.
Ainda assim, saí do filme pensando no poema significativo, que Maria recita para Henner lá no meio do filme, e que vale deixar ele aqui como uma caixa de ressonância simbólica, uma névoa cruel sobre tudo que vemos e ouvimos durante a projeção:
"Somos os andarilhos sem destino
As nuvens que o vento leva embora
As flores tremendo na frieza da morte
Que esperam até que alguém as derrube."
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