Texto de Marco Fialho
O cinema de Sganzerla é um cinema de rupturas e O signo do caos de certa maneira e por esse viés, pode ser considerado o filme mais radical de Rogério Sganzerla. O seu último filme lançado segue um tendência do diretor em lutar contra o academicismo e a preguiça intelectual encruada no Brasil. Sganzerla volta a Orson Welles e define o seu filme na abertura como anticinema. O signo do caos pode ser considerada ainda como uma anticomédia à grosseria representada pelo ato insano da censura. Mas antes de tudo, o filme é mais um experimento de Sganzerla acerca da ruptura que ele tanto realizou em sua trajetória. O cinema como um espelho do Brasil, como uma peça crítica sobre a nossa cultura. Devorá-la antropofagicamente e pelo popular, sendo fiel ao pensamento oswaldiano.
Sganzerla inicia o filme com a apreensão da obra filmada por Welles no Brasil (It's All True) por um censor com um nome muito assintomático, Sr. Amnésio, acompanhado por diversos assessores, que juntos avacalham a obra como se fossem os definitivos críticos de cinema. O resultado é a mutilação e o descarte simbólico da obra de um dos maiores cineastas do mundo que vem ao Brasil, se fascina pela nossa cultura e resolve filmá-la, para o descontentamento do Governo Vargas, que esperava que o cineasta fizesse um determinado filme e Welles realiza outro, em que salienta os trabalhadores da pesca e os sambistas. E a censura está ali, a postos, para agir com cegueira e determinação.
Cinematograficamente, a grande marca realmente de O signo do caos é o antiacademicismo de Sganzerla. O diretor trabalha com reiteradas repetições como se a censura sufocasse o desenvolvimento. Amnésio exibe o filme, mas o que mais vemos são as suas sombras sobre a projeção, como uma mancha permanente a obliterar a obra inacabada de Welles. Quando o jornalista diz ao censor que o filme é poético, o censor lhe responde que está cansado de tanta poesia. Diz ainda o jornalista: "O cinema é oceano, não uma gota d'água". O censor retruca: "Estou cansado desse aguaceiro. Esse filme não serve para ver". E a resposta do jornalista é implacável: "Se esse filme não serve para ver, a vida não serve para viver". Há nesse ponto uma referência implícita a Humberto Mauro, que dizia que cinema é cachoeira. Esse é um filme muito Sganzerla, pois afinal, o tema é o cinema, no conteúdo e na forma. É a busca dele acerca do cinema, um cinema não domesticado, nem pela narrativa nem pelo vanguardismo.
O signo do caos é cinema experimental na veia. Se coaduna com uma definição que Sganzerla expõe em uma entrevista em 1987, que citando Jimi Hendrix diz: "você conhece alguma experiência maior do que você mesmo?", e o próprio Sganzerla complementa exemplarmente: "nesse sentido, o experimentalismo sempre foi um fato renovador". Em seu primeiro tomo, O signo do caos revela-se em suas sombras, em uma inspiração que ambiguamente flerta com o filme noir, o cinema do submundo. Aqui, do submundo do poder carcomido pela ignorância e pela brutalização. Amnésio é um tipo bogardiano falastrão, com um Otávio Terceiro numa interpretação soberba e vigorosa. Os contrastes das sombras em um P&B muitas vezes iluminado pela própria projeção do filme de Welles. A luz de Welles perante o caos do mundo acinzentado pela burrice da censura.
Sganzerla abusa das repetições, sufoca o público com as falsas verdades de Amnésio. As reiterações tocam em dois sentidos: um pela ratificação de um discurso; e noutro, pela saturação. As pérolas vão ecoando sem freios: "O fato é que o filme é mais real do que a realidade"; "isto é cinema ou um monturo de ricos, o cara recebe em dólar"; "que absurdo mostrar um monte de crioulos sambando, isto é cinema?"; "nunca trate um gênio como um idiota, para não termos que tratar um idiota como gênio". Sganzerla vai acumulando essas frases, aparentemente desconexas ou delirantes, desvelam devaneios de um poder obtuso. O diretor vai voltando a Amnésio que repete sem parar um discurso atávico, de uma elite acéfala e preconceituosa. Mas O signo do caos é antes um ensaio sobre o Brasil e a incapacidade das elites de lidar com o popular.
Mas como discutir o Brasil e uma imagem sobre ele, sem pensar no som? Sganzerla realiza um trabalho sistemático no som de O signo do caos. Enquanto os censores assobiam desafinada e insistentemente a clássica Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, Sganzerla introduz um som ruidoso e quase permanente de um improviso nervoso de Charles Mingus ao fundo, que embora bem baixo sustenta um quê de incômodo e incessante à narrativa. Como se a Aquarela do Brasil fosse algo mais audível na superfície, e o som de Mingus mais subterrâneo a causar um estranhamento à imagem, um pouco dentro do pensamento eisensteiniano de contrapor imagem e som.
Depois de um primeiro tomo longo e sombrio em P&B, Sganzerla anuncia um segundo tomo colorido, solar e ditado pelas festas dos ricos, pela sensualidade da mulher (eis que surge uma jovem Camila Pitanga, fazendo caras e poses em uma cama). O lado delirante e inconsequente de uma elite que fala em nome do país. Espiritualmente vazia e materialmente falida. O signo do caos mostra um pessimismo perante um país que navega eternamente pelo caos. Rogério Sganzerla realizou um ensaio poderoso e anárquico contra a bestialização na qual nos encontramos. Os indícios estão cravados nas nossas entranhas e ele traduz tudo isso na sua obra fatídica.
Mas apesar disso tudo, Sganzerla tinha consciência das limitações do cinema. No seu livro Por um cinema sem limite, reafirma a ideia que tinha de cinema, e mais uma vez por intermédio de Orson Welles: "Cidadão Kane: começo e fim do cinema moderno? - Sim, simplesmente porque, antes do neorrealismo e mais que todo o cinema moderno, Welles sabe que o filme é um filme e nada mais..." O cinema de Sganzerla reafirma essas ideias de Welles, do cinema que pensa o mundo, de um lado ciente da força que esse sonho tem e de outro que seu poder de transformação atua em um tempo da longa duração e dentro de uma proposta de ruptura não só com o cinema clássico, mas também do cinema dito de arte. Desfazer a ideia de cinema em voga foi o difícil caminho escolhido por Sganzerla. Por isso, precisamos ainda ver com atenção os seus filmes.

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