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O SIGNO DO CAOS (2005) Dir. Rogério Sganzerla


Texto de Marco Fialho

O cinema de Sganzerla é um cinema de rupturas e O signo do caos de certa maneira e por esse viés, pode ser considerado o filme mais radical de Rogério Sganzerla. O seu último filme lançado segue um tendência do diretor em lutar contra o academicismo e a preguiça intelectual encruada no Brasil. Sganzerla volta a Orson Welles e define o seu filme na abertura como anticinema. O signo do caos pode ser considerada ainda como uma anticomédia à grosseria representada pelo ato insano da censura. Mas antes de tudo, o filme é mais um experimento de Sganzerla acerca da ruptura que ele tanto realizou em sua trajetória. O cinema como um espelho do Brasil, como uma peça crítica sobre a nossa cultura. Devorá-la antropofagicamente e pelo popular, sendo fiel ao pensamento oswaldiano.

Sganzerla inicia o filme com a apreensão da obra filmada por Welles no Brasil (It's All True) por um censor com um nome muito assintomático, Sr. Amnésio, acompanhado por diversos assessores, que juntos avacalham a obra como se fossem os definitivos críticos de cinema. O resultado é a mutilação e o descarte simbólico da obra de um dos maiores cineastas do mundo que vem ao Brasil, se fascina pela nossa cultura e resolve filmá-la, para o descontentamento do Governo Vargas, que esperava que o cineasta fizesse um determinado filme e Welles realiza outro, em que salienta os trabalhadores da pesca e os sambistas. E a censura está ali, a postos, para agir com cegueira e determinação.    

Cinematograficamente, a grande marca realmente de O signo do caos é o antiacademicismo de Sganzerla. O diretor trabalha com reiteradas repetições como se a censura sufocasse o desenvolvimento. Amnésio exibe o filme, mas o que mais vemos são as suas sombras sobre a projeção, como uma mancha permanente a obliterar a obra inacabada de Welles. Quando o jornalista diz ao censor que o filme é poético, o censor lhe responde que está cansado de tanta poesia. Diz ainda o jornalista: "O cinema é oceano, não uma gota d'água". O censor retruca: "Estou cansado desse aguaceiro. Esse filme não serve para ver". E a resposta do jornalista é implacável: "Se esse filme não serve para ver, a vida não serve para viver". Há nesse ponto uma referência implícita a Humberto Mauro, que dizia que cinema é cachoeira. Esse é um filme muito Sganzerla, pois afinal, o tema é o cinema, no conteúdo e na forma. É a busca dele acerca do cinema, um cinema não domesticado, nem pela narrativa nem pelo vanguardismo. 

O signo do caos é cinema experimental na veia. Se coaduna com uma definição que Sganzerla expõe em uma entrevista em 1987, que citando Jimi Hendrix diz: "você conhece alguma experiência maior do que você mesmo?", e o próprio Sganzerla complementa exemplarmente: "nesse sentido, o experimentalismo sempre foi um fato renovador". Em seu primeiro tomo, O signo do caos revela-se em suas sombras, em uma inspiração que ambiguamente flerta com o filme noir, o cinema do submundo. Aqui, do submundo do poder carcomido pela ignorância e pela brutalização. Amnésio é um tipo bogardiano falastrão, com um Otávio Terceiro numa interpretação soberba e vigorosa. Os contrastes das sombras em um P&B muitas vezes iluminado pela própria projeção do filme de Welles. A luz de Welles perante o caos do mundo acinzentado pela burrice da censura.

Sganzerla abusa das repetições, sufoca o público com as falsas verdades de Amnésio. As reiterações tocam em dois sentidos: um pela ratificação de um discurso; e noutro, pela saturação. As pérolas vão ecoando sem freios: "O fato é que o filme é mais real do que a realidade"; isto é cinema ou um monturo  de ricos, o cara recebe em dólar"; "que absurdo mostrar um monte de crioulos sambando, isto é cinema?"; "nunca trate um gênio como um idiota, para não termos que tratar um idiota como gênio". Sganzerla vai acumulando essas frases, aparentemente desconexas ou delirantes, devaneios de um poder obtuso. O diretor vai voltando a Amnésio que repete sem parar um discurso atávico, de uma elite acéfala e preconceituosa. Mas O signo do caos é antes um ensaio sobre o Brasil e a incapacidade das elites de lidar com o popular. 

Mas como discutir o Brasil, uma imagem sobre ele, sem pensar no som? Sganzerla realiza um trabalho sistemático no som de O signo do caos. Enquanto os censores assobiam desafinada e insistentemente a clássica Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, Sganzerla introduz um som ruidoso e quase permanente de um improviso nervoso de Charles Mingus ao fundo, que embora bem baixo sustenta algo de ruidoso à narrativa, cria um incômodo incessante. Como se a Aquarela do Brasil fosse algo mais audível na superfície, e o som de Mingus mais subterrâneo a causar um estranhamento à imagem, um pouco dentro do pensamento eisensteiniano de contrapor imagem e som.                                    

Depois de um primeiro tomo longo e sombrio em P&B, Sganzerla anuncia um segundo tomo colorido, solar e ditado pelas festas dos ricos, pela sensualidade da mulher (eis que surge uma jovem Camila Pitanga, fazendo caras e poses em uma cama). O lado delirante e inconsequente de uma elite que fala em nome do país. Espiritualmente vazia e materialmente falida. O signo do caos mostra um pessimismo perante um país que navega eternamente pelo caos. Rogério Sganzerla realizou um ensaio poderoso e anárquico contra a bestialização na qual nos encontramos. Os indícios estão cravados nas nossas entranhas e ele traduz tudo isso na sua obra fatídica. 

Mas apesar disso tudo, Sganzerla tinha consciência das limitações do cinema. No seu livro Por um cinema sem limite, reafirma a ideia que tinha de cinema, e mais uma vez por intermédio de Orson Welles: "Cidadão Kane: começo e fim do cinema moderno? - Sim, simplesmente porque, antes do neorrealismo e mais que todo o cinema moderno, Welles sabe que o filme é um filme e nada mais..." O cinema de Sganzerla reafirma essas ideias de Welles, do cinema que pensa o mundo, de um lado ciente da força que esse sonho tem e de outro que seu poder de transformação atua em um tempo da longa duração e dentro de uma proposta de ruptura não só com o cinema clássico, mas também do cinema dito de arte. Desfazer a ideia de cinema em voga foi o difícil caminho escolhido por Sganzerla. Por isso, precisamos ainda ver com atenção os seus filmes.     

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