Ensaio-crônica (ou um ensaio crônico) de Marco Fialho
Se antes era uma mera promessa, hoje, a nossa vida já é cinema. Essa sentença síntese enuncia um mundo que já vivemos: o da ficcionalização da vida cotidiana. Existe nela uma incontornável ambiguidade, o de sermos na vida real algo que a princípio deveria habitar somente em um mundo imaginário. Mas é justamente essa clivagem entre o imaginado e o real que não mais existe. Instaurou-se um mundo a partir das narrativas, como se a vida só existisse quando narrada. Substituímos a vida pela narração dela. Mais do que a internet, as redes sociais fixaram essa prática. Fica a pergunta: se vida real e mundo imaginado se fundem, o homem de hoje estaria apartado da imaginação?
Nos parâmetros contemporâneos, para ser, se precisa aparecer. Em um mundo ditado pela imagem, o ter condiciona-se ao estar em evidência para muitos. Eis a nova equação. A vida comum, essa na qual saímos nas ruas e vemos pessoas indo às compras, à praia, pegar à condução para ir trabalhar, não existe, ela é um limbo existencial, daí ser cada vez mais comum a proliferação de álbuns do cotidiano, com narrativas ficcionais de nós mesmos. Minha vida é assim, acordo tal hora, faço meu desjejum comendo tal coisa, nunca acerto a roupa que devo vestir, me atraso e pego o ônibus lotado. E assim se vai até o último gole para fechar à noite e a vida vazia. Enfim, a vida só existe depois de ser narrada.
Hoje, caminhando pela praia avistei duas jovens correndo. Uma delas puxou o celular e mantendo o ritmo das passadas começou a transmitir uma live sobre a corrida delas. Parecia uma mensagem encorajadora. Cinco minutos depois, eu encontro as duas novamente, e elas apenas caminhavam pelas areias. Com o smartphone ligado o comportamento era um, com o mesmo desligado era outro. Ao se ter a câmera do celular ativada a vida se transforma instantaneamente em uma narrativa. Walter Benjamin, em seu clássico estudo A obra de arte na era da reprodudibilidade técnica, já dizia que todas as personalidades virariam cinema, sairiam das sombras à luz. Talvez, o que ele jamais imaginaria, há quase cem anos atrás, é que todas as existências virariam cinema, isto é, fariam parte de uma ficcionalização da vida e como isso impactaria no cotidiano e na maneira da humanidade se portar no mundo.
A maior promessa do liberalismo era se atingir uma liberdade individual, política e econômica. Mas do Século XIX até nossos dias, muita água correu debaixo da ponte e o que antes era liberdade, agora é só uma egolatria irrestrita e incondicional. O coletivo fica para depois, o que importa é o smartphone registrar os meus passos, espelhar minha mais latente felicidade imagética. As sociedades sempre foram afeitas às narrativas, claro, entretanto, as motivações não são mais as mesmas.
É sabido que as sociedades tradicionais se fundamentaram pela oralidade. Entretanto, essa instância tinha uma função específica, a de transmitir o conhecimento de uma geração para outra. Manter vínculos e saberes era a pedra fundamental dessas organizações sociais, em especial para a manutenção da coesão do coletivo. Hoje, a existência dessas sociedades mais oralizadas diminui consideravelmente, estão inclusive bastante ameaçadas e a tendência é cada vez mais elas se desintegrem a partir da assimilação cultural na qual a ficcionalização pode expressar um peso enorme, talvez mais grave do que muitos pensam. O planeta está ameaçado por uma ocupação territorial econômica desenfreada, mas o domínio antes passa por outro viés, o da narrativa. Já se pode ver na sociedade movimentos de extrema direita organizados contra as sociedades tradicionais, que defendem a integração desses povos originários à mecânica do mercado de trabalho capitalista. Chega-se a proferir que esses povos seriam vagabundos sem ocupação que impedem o desenvolvimento do país.
O cinema (basta ver os resultados de market share e o sucesso das majores dos streaming como Netflix e Amazon Prime) se tornou a narrativa do poder, foi apropriado por ele e não só por meio da indústria em si, pois já a extrapolou e muito. Quer um projeto de poder mais bem-sucedido que esse? A I.A., a proliferação do Chat GPT e seu contínuo aperfeiçoamento e emprego na artesania dos filmes, tem mostrado o quanto voraz e desastroso pode ser a ficcionalização das narrativas como estratégia de dominação em um mundo onde a concentração de riquezas é um fato. Entretanto foi uma selfie, a do Oscar (nossa imagem de capa) de 2014, em que Ellen DeGeneris dá a largada e abre uma perspectiva diferente acerca da autoimagem e da ideia mesmo de imagem. Abre-se então um fosso descomunal a abalar a ideia tradicional de cultura. À época, algo até foi notado de diferente, mas jamais com a profundidade de que aquele simples ato significaria tanto para o planeta, talvez somente equivalente à chegada do homem à lua lá nos longínquos anos de 1969.
Uma das consequências culturais dessa autoespetacularização é notória: o flagrante decréscimo das narrativas tradicionais e de uma maneira bastante violenta. Em um lastro de vinte anos, ocorreu um fenômeno que nem mesmo séculos e séculos foram capazes de fazer. Prova disto são os stories do Instagram, que são apagados em menos de 24 horas. O peso das grandes mídias, como o Google e a Meta, são tão determinantes para o mundo contemporâneo, que eles ditaram a mudança radical nos últimos anos, fazendo as foto still virarem algo obsoleto, na medida que incentivaram na cara mais deslavada possível a produção de vídeos dos usuários. As mídias sociais pari passu estão reduzindo as nossas memórias ao instante, em um estranho processo de implantação de um mundo regido pelo Mal de Alzheimer. A instantaneidade da memória precisa ser urgentemente estudada como um dos mais graves maus do Século XXI. A preservação da memória hoje é tão importante quanto uma alimentação saudável, livre de agrotóxicos e dos conservantes industriais ditados pelos donos das mídias sociais.
Hoje, filmar a si mesmo em seu cotidiano já se basta, e esse fato trouxe algo terrivelmente macabro, que é um processo de alienação frente ao mundo, e desse engendramento nasce um novo elemento, o da autoalienação. O poder da imagem já não basta, o que importa agora é a autoimagem. Se Guy Debord estudou a espetacularização da sociedade no fim dos anos 1960, agora o fenômeno é bem mais amplo e irrestrito, já que vivemos a época da autoespetacularização. O grau de alienação é total, pois o mundo não importa mais. O coletivo então, melhor esquecer. O curioso é que não queremos lembrar nem mais de nós mesmos, pois com a autoimagem traz consigo, de chofre, a autodestruição, e olha que nem mencionei os abundantes filtros que alteram e substituem a autoimagem. O autoapagamento, a glória do agora e a certeza de que o ontem já era, quanto mais imediato melhor. Vivemos a vida digital, algo que podemos dissolver a todo instante e reinstalar outra vida. É como se a vida de agora apagasse a que já passou.
Esse fenômeno descortinou certos impactos em nossa cultura, determinadas noções que foram alavancadas e puderam ser vivenciadas com naturalidade. Mercadologicamente algumas portas foram abertas, e ainda estão e sequer sabemos quando fecharão. Lembro da campanha de lançamento de Barbie, de Greta Gerwig, no ano de 2023, em que uma das estratégias de divulgação da Warner, distribuidora do filme, foi colocar imensas caixas vazias da referida boneca para que as pessoas adentrasse nelas e tirassem uma foto como fossem uma Barbie. Conversei com várias pessoas sobre esse tipo de publicidade e ninguém considerou o quanto essa "estratégia de marketing" não era assim algo tão inocente quanto parecia em um primeiro momento. Esse ato de se fotografar como Barbie, e postar logo a seguir nas redes sociais como uma boneca, que nada mais é que o maior produto de venda de uma empresa, transformava as pessoas fotografadas em fetiches de si mesmos, o desejo ilusório de consumir e de ser consumido, uma maneira explícita de alienação. Somente uma sociedade perfeitamente autoespetacularizada para se permitir tal abuso em tamanho vulto por uma empresa.
Por sua vez, no cinema, Barbie não foi o único exemplo recente a mexer com a noção autocentrada. Me vem à cabeça, para usar outro exemplo bem recente, o 4° filme da franquia John Wick, em que o protagonista, interpretado por Keanu Reeves, vive em um mundo onde somente o rosto dele importa, os outros personagens aparecem como meros autômatos desimportantes, todos indivíduos destinados a não viver. Durante todos os minutos do filme, o assistimos a matar sem piedade, se equilibrando em acrobacias espetaculares, como se só o seu ego e sua imagem fossem relevantes para o filme e o mundo. Mais do que um personagem para ser admirado, John Wick se torna um espelho do espectador, como se nesse jogo proposto pelo diretor, estivéssemos com um controle de videogame na mão a matar as centenas de perseguidores que o nosso herói enfrenta. Algumas cenas inclusive foram filmadas como se fossem extraídas diretamente de um videogame. De certa forma, nós somos John Wick em sua volúpia e impulso insaciáveis para matar. Essa transferência imagética entre personagem e espectador é possível devido ao alto grau de gamificação da sociedade, e o filme funciona como uma espécie de GTA, onde a única regra é agredir, roubar e matar, em um exercício onde o outro não existe.
Recentemente assisti a um documentário sobre o cineasta colombiano Luiz Ospina e ele disse algo bastante interessante: "Nesse mundo onde cada pessoa tem um celular, todo mundo é cineasta, até que se prove ao contrário". A premissa é exatamente essa. Mas devemos ponderar bastante acerca dessa imagem criada por Ospina. Devemos sobretudo pensar o quanto realmente estamos exercendo nossa verve de cineasta e o quanto estamos exercitando nossa função de pessoas bem adestradas pelo sistema, já que pelas regras da redes sociais, há algum tempo, estamos amordaçados pelo status quo. "Faça um vídeo para aumentar seu engajamento". Esse é um tipo de ideia proposta pela Meta (que domina Facebook, Instagram e WhatsApp), que concilia por exemplo com outra ideia, a do empreendedorismo: "seja dono do seu próprio negócio, empreenda", mas na prática o que você vai conseguir é trabalhar para alguma empresa, seja como franqueado, seja como "empreendedor" de aplicativo, embora na prática fica evidente a fraude, de que não estamos no domínio de nossas ações, apesar do mundo das aparências capitalistas alimentar a fantasia da vitória do self-made man.
Não casualmente, o discurso do bloco do eu sozinho capitalista é sempre positivo e imponderavelmente enganoso e ilusório. A aniquilação crescente do outro virou uma regra irrevogável, para que pensar fora de nós mesmos se nos bastamos. E podemos ir além. O outro, mais do que ser um óbice, é mesmo um impeditivo, um elemento a desvirtuar o foco. O mais argutos já devem ter percebido que essas ideias do eu, da autoconfiança e do individualismo, impedem que cada um veja a força que um trabalho e um pensamento coletivo é capaz de fazer pelo mundo, basta ver as catástrofes quando todos se mobilizam para ajudar a quem precisa.
Se hoje viramos cineastas e atores de nossa própria existência, inflamos artificialmente a nossa autoestima, criamos uma redoma falsa de que assim estamos vivos e potentes. O maior problema dessa "verdade" acontece quando desligamos o celular e olhamos melancolicamente para o espelho e verificamos que na real estamos mais sós do que nunca. É triste verificar que esse projeto da individualização funciona como um instrumento ideológico poderoso, que nos afasta cada vez mais um do outro ao permitir que um sistema injusto se perpetue, já que cada um de nós está imerso em si mesmo e afastado do outro, justamente, esse outro, o único capaz de por em xeque o sistema político vigente.
Adorável, disse tudo.
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