Texto de Marco Fialho
Se há algo um mérito que não se pode tirar de George Miller é a enorme capacidade de criar um poderoso mundo imagético e sonoro à sua imagem e semelhança. A franquia Mad Max prova isso, ainda mais essa segunda leva iniciada com a Mad Max: Estrada da Fúria (2015), e confirmada agora, na regressão temporal tour de force para realizar Furiosa: Uma Saga Mad Max, um filme mais preocupado com o drama dos personagens do que na ação em si. O diretor mostra que não é só um bom criador de mundos, mas também um roteirista atento (aqui junto com Nico Lathouris, que igualmente dividiu o roteiro com ele em Estrada da Fúria) imprime uma força impressionante aos principais personagens da trama.
Um dia antes de assistir a Furiosa: Uma Saga Mad Max vi um vídeo na internet que mostrava o que resta ainda da área verde em nosso planeta e o quanto é assustador como o estamos destruindo com celeridade em nome de uma ambição econômica desenfreada e devastadora. O filme se passa justamente em um futuro distópico, que a princípio pode ser visto como uma visão pessimista, embora talvez hoje seja mais para realista.
O que mais me chamou atenção em Furiosa: Uma Saga Mad Max é como George Miller idealizou esse mundo do futuro, como ele o pensou tanto do ponto de vista físico (paisagem) quanto psicossocial (personagens). Talvez caiba até uma rápida comparação com a franquia Planeta dos Macacos, justamente porque na terra dos símios, o planeta está destruído, mas vemos os escombros do que fomos, inclusive a Estátua da Liberdade na praia, fora a paisagem da cidade proibida, onde vê-se Nova York, com seu metrô e tudo, enfim, a civilização que pôs tudo a perder está lá materialmente de alguma maneira.
Se deslocarmos a mesma ideia para Furiosa: Uma Saga Mad Max, ficaremos espantados, pois afinal quais seriam os resquícios materiais do mundo de hoje no mundo do futuro? Materialmente quase nada, apenas alguns bens materiais como carros e armas, embora todos sempre recauchutados ou readaptados. No quesito construções, prédios e casas nada existe como sombra de um passado humano. O que resta é uma produção mínima de gasolina e uma reserva pequena de água. No mais, são paisagens desérticas cobertas por montes de areia amarelada e algumas falésias. Essa é a paisagem presente no filme. Os amontoados de pessoas vivem em cavernas entre morros e reentrâncias de rochas, algo realmente soturno. Há todo o tipo de aberração, olhos ausentes, máscaras artificiais, maquiagens, tintas e roupas estranhas. São corpos adaptados à guerra e a sua permanente eclosão.
Quando pensamos o filme pelo viés de quem são os personagens, como se relacionam entre si, o lado sinistro se salienta ainda mais. O mundo é dominado pelas gangues, uma espécie de milícia do futuro, que na base da força congrega soldados dispostos a morrer pelos seus líderes. Não há mais países, nenhuma divisão geopolítica clara e muito menos organização política ou partidária, tudo é resolvido apenas pela força física de um sobre o outro, o único motor social são as guerras entre as gangues. Curioso como Miller e Lathouris constroem uma sociedade a partir da dissolução da ideia de grupamentos familiares. Esses elementos sociológicos são determinantes tanto para a distopia montada quanto para os conflitos que vemos constantemente em cena. Furiosa (Anya Taylor-Joy) vem de uma comunidade agrária escondida, ainda com uma pequena unidade florestal preservada, o único oásis visível em todo o filme, e essa é uma região frutífera (tanto que ela anda com uma semente de pêssego na mão).
De certo modo, o mundo da política praticamente é inexistente, ele é substituído por uma ideia premente de sobrevivência, de guerra sistemática pela vida. Fora do oásis de onde vem Furiosa, não há uma visão de certo ou errado, cada qual luta para se manter como pode em meio ao caos que é a vida naquele território árido e cruel. Quando o cínico Dementus (Chris Hemsworth em ótima interpretação) enfrenta Furiosa, ele mal lembra quem era a mãe dela, o motivo da vingança de Furiosa, dentre as várias mortes que provocou pela vida afora. Dementus diz a ela que também perdeu os pais covardemente, os igualando como seres humanos.
O mundo apresentado por George Miller é sem fronteiras, Estado ou partidos, e pior, quase sem rastros do nosso mundo de hoje, o que aparentemente reduz o filme a si mesmo, como um ente independente de nós, o que é uma mentira, pois a crise que vemos lá é também a nossa, energética, ecológica e de egoísmo, com uma vantagem só perante a nós: não há mais nada a ser destruído, somente alguns humanos que ainda persistem nesse ambiente para lá de hostil. Como em Mad Max: A Estrada da Fúria, a direção de arte é um forte aliado ao projeto, para estabelecer uma imagética própria, onde algo de futurista está amarrado às sociedades pré-históricas, que abusavam da metalurgia para construção de armas e artefatos de guerra.
Visto em uma análise dramatúrgica, Furiosa: Uma Saga Mad Max é uma aventura de resistência e força física dos corpos, motivada pela vingança e um exercício mais aprumado de desenvolvimento de personagem, ainda que Furiosa quase não fale durante o filme, apenas expresse corporalmente o que veio fazer nesse mundo caótico que lhe retirou o direito à felicidade familiar. Há uma força imbuída aos corpos, ora tão mecanizados quantos os automóveis e caminhões envenenados que Miller sempre nos brinda. Se por um lado, George Miller mais uma vez mostra que é um craque na criação de um mundo pós apocalíptico, por outro, como boa parte dos filmes de vingança vindo de Hollywood, Furiosa: Uma Saga Mad Max apoia-se numa exagerada personificação da trama e numa subsequente despolitização das ações humanas, mesmo que tenha momentos dramáticos bem construídos, a base política, é sempre frágil, pois tudo se restringe sempre ao indivíduo. Mas afinal, isso é até compreensível e coerente, já que Miller não poderia mesmo trair as bases de sustentação do seu cinema: a narrativa clássica.
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