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DIÁLOGOS COM RUTH DE SOUZA (2022) Dir. Juliana Vicente


Texto de Marco Fialho

Há muito tempo que Ruth de Souza, uma das nossas mais importantes atrizes brasileiras, merecia ter um documentário para explorar a riqueza de sua trajetória no cinema, no teatro e na televisão. Ruth foi a primeira atriz negra a ter uma carreira sólida nas artes dramáticas e isso por si só garante a relevância de Diálogos com Ruth de Souza, dirigido por Juliana Vicente. 

Se por um lado, Diálogos com Ruth de Souza é um filme obrigatório, cabe também assinalar o quanto ele também é irregular em sua construção, em especial pela montagem que não consegue costurar uma bela história. Um dos elementos que mais atrapalha o ritmo são as imagens ficcionais realizadas pela diretora, que por serem muito imprecisas pouco acrescentam aos depoimentos e imagens de arquivos. Essas imagens impedem sistematicamente o envolvimento do público com as histórias relevantes de Ruth de Souza.

Outro elemento que dificulta a atenção do espectador, é a pouca fluência entre as imagens do presente e do passado. Falta um quê que vá alinhavando as partes, para lhes conferir uma certa coerência narrativa. Um dos pontos altos de Diálogos com Ruth de Souza está na pesquisa que levanta muitos materiais de valor histórico. Não bastando os depoimentos reunidos de várias épocas, alguns realizados pela própria diretora outros bem  anteriores, o filme conta com imagens poderosas de arquivos tanto da carreira da atriz quanto de filmes interpretados por Ruth de Souza. A diretora Juliana Vicente também intervém na filmagem ora conversando com Ruth ora comentando em algumas passagens da filmagem, propondo a Ruth falar das relações amorosas em muitos momentos o que deixou ainda mais marcante a dificuldade dela em abordar a temática amorosa. No todo, esses diálogos ficam muito fragmentados, pois falta ao filme uma coesão temática para além da centralidade da imagem de Ruth de Souza.

Precisamos reconhecer que devido ao passado dessa atriz, que teve que trabalhar muito para impor o seu talento inconteste, as desconfianças dela demonstradas nas entrevistas perante ao mundo são gigantescas. E talvez isso seja o mais impactante e intenso deste documentário, promover uma interação com uma pessoa que travou uma luta para se firmar na profissão, luta essa que seria bem menor caso Ruth fosse uma atriz branca. O racismo está ali o tempo todo, assim como o machismo. Ruth de Souza teve que enfrentar e vencer essas duas forças repressoras, para poder reafirmar o seu valor como mulher e preta em uma sociedade patriarcal e racista.

Quero deixar bem registrado, que as ponderações feitas aqui sobre o filme, não podem abalar a visão final sobre a importância deste documentário de Juliana Vicente sobre uma das maiores atrizes brasileiras, até mesmo como reconhecimento urgente deste fato. Talvez coubesse ainda legendar as falas de Ruth de Souza, pois algumas são quase incompreensíveis. 

Uma das coisas que mais gostei na proposta da diretora Juliana Vicente é como ela deu voz para Ruth de Souza e como ela igualmente filmou o carinho que sentia pela sua personagem. Creio que esse afeto e cuidado, seja uma reverência importante de quem está se pondo a fazer uma homenagem, e prestando um tributo, é a melhor sensação que o filme deixa. 

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