Texto de Marco Fialho
Numa época em que os filmes de ação e violência estão muito em voga, Crônicas do Irã, dirigido pelos jovens Ali Asgari (Até Amanhã) e Alireza Khatami, mostra o quanto um filme pode ser violento sem derramar uma gota de sangue ou mesmo abrir mão de uma câmera nervosa e cortes abruptos. Apesar da direção concisa, sem nenhum floreio técnico, a obra soa cortante por ser cirúrgica ao tocar numa ferida aberta inerente ao sistema político do Irã, em especial à censura.
Na primeira e longa cena inicial, vemos um plano geral da grande cidade de Teerã indo lentamente acordando, da noite vamos avistando a luz do dia e os sons característicos da urbanidade, os carros e as ambulâncias avisando sobre o que é viver naquele turbulento território. Mas se a cidade ao longe parece como qualquer outra, de perto não é bem assim. A partir de então vamos conhecendo histórias que poderiam ser de terror, como a primeira em que um homem não consegue registrar o nome do seu filho como David, julgado inapropriado pelo burocrata do cartório, como uma apologia ao estrangeirismo.
Crônicas do Irã acerta no formato, o de não mostrar o rosto do agente do Estado, apenas o tom monocórdico e sereno de quem tem o poder de decidir sobre a vida do outro. Extrair o rosto do opressor é uma maneira que Ali Asgari e Alireza Khatami encontraram de suprimi-los, se não da vida, pelo menos da arte. A câmera se fixa sempre nos oprimidos, em quem busca, na maioria das vezes, lutar contra a burrice cega e absurda de um governo xiita que não permite a menor expressão do indivíduo.
O filme constrói cenas curtas que trazem à luz as dificuldades que a população iraniana enfrenta no dia a dia devido a sinistra e destrutiva relação entre religião e política. São episódios que em outros países nada resultariam, mas que no Irã vira uma novela patética e que flerta com o universo de Franz Kafka. Uma menina quer participar de um festejo escolar com uma roupa a sua escolha, mas não só é impedida como lhe é imposta a roupa oficial, no qual mal se vê o rosto. Talvez seja esse episódio o que melhor trabalhe com a noção de extracampo dos diretores, que contrasta violentamente o que é visto em quadro (o oprimido, no caso, a menina) e o que não está em quadro (os agentes da dominação) e decide sobre a vida das pessoas.
Crônicas do Irã retrata o constrangimento que é viver no Irã contemporâneo, mostra o quanto um país urbano pode ainda conviver com um atraso cultural absurdo e limitador da felicidade humana, cruel aos direitos da mulher e apequenado diante de uma religião retrógrada e opressora. Alguns episódios registram o quanto a tecnologia é utilizada para a preservação de costumes bizarros. De repente ouvimos: "a câmera pegou a senhora fazendo tal coisa...". É a modernidade abraçada com o atraso, o pior dos mundos. Quando os diretores apontam a câmera novamente para a cidade, em um plano geral, vemos tudo ruir. Depois de tanto desabamento moral, eis que os prédios também se desmoronam em um grande terremoto, uma imagem brutal e simbólica acerca de um Irã que nas aparências é imponente e desenvolvido, mas por dentro é decadente e podre.
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