Pular para o conteúdo principal

YVY PYTE - CORAÇÃO DA TERRA (2023) Dir. Alberto Alvares e José Cury


Texto de Marco Fialho

"Yvy Pyte - Coração da Terra", dirigido por Alberto Alvares e José Cury, pode ser inserido em um grupo de filmes realizados por indígenas para discutir e expor o modo de vida, a cultura em geral e as problemáticas advindas da convivência forçada historicamente com os homens brancos desde 1500. É importante situar esse filme exatamente como fiz para se falar que as formas narrativas dos povos originários possuem traços próprios, embora nem sempre alheios a "forma não indígena de filmar", lembrando que os os equipamentos em si, assim como o seu manuseio interpôs alguma interferência não indígena.  

Portanto, não é casual, se começar aqui a nossa análise pela questão do uso do aparato cinematográfico, já que sem esse entendimento, tudo torna-se um esforço inútil de um grupo cultural interpelando e tentando compreender o que vê apenas com os seus instrumentais teóricos, sem levar em conta tudo o que realmente está em jogo nessas narrativas. 

A primeira pergunta interessante que pode vir a ser feita é: se pensarmos nas narrativas que estão a circular por aí, qual seria o diferencial das obras filmadas a partir da visão dos próprios povos originários brasileiros? Pelo que já pude observar em outros filmes (vou citar dois que correram muitos festivais Brasil afora em 2023), como "Märi hi - a árvore dos sonhos" e "Thuë pihi kuuvi - uma mulher pensando", há uma incorporação expressiva da narração em off nesses dois filmes, o que também está fortemente presente em "Yvy pyte - Coração da Terra", no sentido de uma descrição que lembra as narrativas orais já bastante conhecidas desses povos originários em território brasileiro. 

Evidente que, daqui muito em breve, cabe uma análise mais pormenorizada acerca desses filmes, no intuito de entendê-los numa perspectiva mais ampla, com as devidas interseções e alteridades. "Yvy pyte..." traz essa força narrativa oralizada, que por vezes pode causar cansaços em uma plateia não indígena, mas como querer imputar a eles uma narrativa que não lhe é própria e característica. O grande valor desses filmes está na adaptação que essa cultura se esforça na utilização do meio audiovisual como expressão sua. Mas não há como negar o vídeo em si como uma ratificação de um aculturamento, mesmo que o seu viés seja crítico ou mesmo para uma denúncia contra os povos opressores. 

Um dos grandes destaques de "Yvy pyte..." é a necessidade de se discutir o próprio conceito de fronteira, entendido pelos representantes dos povos originários como um instrumento de divisão opressora, que divide o que não é divisível. Esse viés crítico, por exemplo, reforça a relevância de ouvir diretamente a voz desses povos, sem a mediação do chamado homem branco realizador de filmes. Vale o registro da fala, na sessão em Tiradentes, de um dos diretores, Alberto Alvares, que foi bem direto e certeiro em seu discurso: "eu não me considero um diretor, eu sou um porta-voz de um sonho coletivo". Achei isso marcante demais a colocação de que sua voz expressava uma representatividade latente, explícita, e que o discurso político é fundamental, pois há uma consciência da importância de sua inserção no próprio filme. 

Mas outra característica a ser observada em "Yvy pyte..." é o do aspecto poético dessas narrativas. Isso é visível na própria ideia engendrada na construção do filme: a da busca pelo coração da terra, que corresponde a um ponto de origem fundamental, que ajudaria no fortalecimento da cultura dos povos originários. Já há um interesse dentro desses povos de preservar sua cultura, que já está se perdendo devido a um visível processo de aculturamento ocorrido de maneira mais grave nos últimos 10 anos. 

Nessa ótica do poético, instaura-se um road movie guarani (pelas palavras de um dos produtores do filme), onde o diretor Alberto se torna personagem a narrar a busca por Yvy pyte, um lugar que permite uma reconexão entre as divindades ancestrais com os homens e mulheres de hoje, que ainda guardam os conhecimentos e saberes dos seus predecessores. Assim, nascem metáforas lindas como a dos pássaros, como seres com a capacidade simbólica de quebrar os limites castradores que demarcam as fronteiras. "Yvy pyte...", para mim, serviu para redesenhar e repensar essas fronteiras que estamos já condicionados a não refletir criticamente sobre elas. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteiramente to

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2024

Nesta página do CineFialho, o leitor encontra todos os filmes vistos no decorrer de 2024, com cotação, um pequeno comentário ou o link para a crítica do filme. 212) A FLOR DE BURITI (2024) Dir. João Salaviza e Renée Nader Messora COTAÇÃO: 9 Crítica:  A FLOR DE BURITI (2024) Dir. João Salaviza e Renée Nader Messora (cinefialho.blogspot.com) __________ 211) SALAMANDRA (2024) Dir. Alex Carvalho COTAÇÃO: 3 Crítica:  SALAMANDRA (2024) Dir. Alex Carvalho (cinefialho.blogspot.com) __________ 210) UM LUGAR SILENCIOSO: DIA UM COTAÇÃO: 6 Crítica:  UM LUGAR SILENCIOSO: DIA UM (2024) Dir. Michael Sarnoski (cinefialho.blogspot.com) __________ 209) CASA IZABEL (2024) Dir. Gil Barone COTAÇÃO: 6 Crítica:  CASA IZABEL (2022) Dir. Gil Barone (cinefialho.blogspot.com) __________ 208) TESTAMENTO (2024) Dir. Denys Arcand  COTAÇÃO: 7 Crítica:  TESTAMENTO (2024) Dir. Denys Arcand (cinefialho.blogspot.com) __________ 207) BANDIDA: A NÚMERO UM (2024) Dir. João Wainer COTAÇÃO: 4 Crítica:  BANDIDA: A NÚMERO UM (