Texto de Marco Fialho
O mestre Andrei Tarkovski, em seu grandioso livro "Esculpir o tempo", quando ele defende que o tempo é a matéria-prima do cinema, no sentido da capacidade intrínseca da câmera em registrar o tempo. Em "Sofia foi", dirigido por Pedro Geraldo, essa dimensão pode ser sentida e vivida profundamente pelo espectador. Como é interessante poder assistir a um filme brasileiro que valoriza muito esse princípio primordial do fazer cinematográfico.
Por isso, a primeira sensação que temos de "Sofia foi" é a do convite à imersão e à contemplação, a de sermos cúmplices de uma narrativa totalmente voltada para a personagem Sofia, uma jovem lésbica e tatuadora, de 22 anos. A partir de então, o seu tempo passa a ser o nosso durante toda a projeção, somos mergulhados nele durante os seus 67 longos e agradáveis minutos. Esse é um filme que passeia ternamente pelo silêncio reflexivo de Sofia, embalado pelas suas últimas horas de vida. Fiquei a pensar o quanto esse limite entre a vida e a morte é bem mais tênue que imaginamos. Um dos méritos da direção de Pedro Geraldo é não se apoiar em possíveis justificativas para o ato final de Sofia, de fazer com que estes breves instantes sejam dignos da vida da nossa protagonista. Em "Sofia foi", a vida, com suas dinâmicas indeterminadas, é o grande esteio para ser pensado e sentido.
O campus da USP (Universidade de São Paulo) torna-se o espaço privilegiado para Pedro Geraldo compor imagens que atestam um rigor estético primoroso, com cenas que contrastam a amplitude espacial e temporal com outras que flertam intimamente com expressões sensoriais de Sofia, como a que ela beija vagarosa e ternamente a namorada. Creio ser a proposta de mise-en-scène de "Sofia foi" de um esmero raro de ser visto em nosso cinema. Pedro Geraldo abraça Sofia de tal maneira que só nos resta fazer o mesmo, tamanho afeto que sentimos nessa fruição.
Esse dia que dividimos com Sofia não deixa de ter uma dose maciça de melancolia. Salta da tela uma solidão, um desamparo, como se ela estivesse a vagar fantasmagoricamente pelo Campus da USP. Seu desencontro com o mundo é evidente e a cena do assalto só vem a reafirmar isso. Nós somos a sua maior companhia enquanto ela flana em direção para o seu trágico destino. As malas que se arrastam pela USP são mais um sinal do desamparo de Sofia. Quando encontra com um amigo, esse informa que vai viajar, sair fora. Definitivamente, as perspectivas do amanhã não são as melhores para essa dândi pós-moderna. Ainda ficamos com uma dúvida instigante: será que o que vemos é o espírito de Sofia a vagar pelo Campus da USP? Essas são leituras possíveis e mistérios que só deixam o filme mais intrigante e lacunar, afinal, Pedro Geraldo dá espaço em sua narrativa, para que elocubremos sobre esse aspecto, e isso é fascinante.
Pedro Geraldo trabalha muito bem com pequenos sinais imagéticos, como tatuagens e desenho de coração numa árvore para expandir nossos sentidos em relação à Sofia. Em um mundo imerso em fragilidades, onde tudo está se dissolvendo como nuvens, esses pequenos registros soam como sinais de que algo pode ter uma duração temporal mais duradouro. O tempo está presente em diversas passagens e as lentas fusões entre passado e presente são muito bem construída, além de produzirem no âmbito sensorial, uma unicidade. De repente, um detalhe do presente puxa uma lembrança do passado e como é bonito ver que o rosto de Sofia serve como um ponto crucial para essa evocação.
A poesia de "Sofia foi" não é algo pré-fabricada, muito pelo contrário, brota da própria delicadeza com que Pedro Geraldo trata personagem e a sua relação com o tempo. Quando o dia amanhece, Sofia caminha com suas malas em um imenso corredor que leva ao nada, ou quem sabe ao infinito ou para a eternidade. Ela pode até ter partido desse mundo cão e aparentemente sem sentido, mas ficamos com a certeza de que a ideia de amor foi com ela. Enquanto isso, em algum lugar do universo, um mestre russo que também partiu prematuramente, abre um sorriso.
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