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SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO


Texto de Marco Fialho

Se a realidade muitas das vezes parece ficção, o que dizer sobre a ficção parecer a realidade? É nesse terreno movediço que Todd Haynes estrutura o seu novo filme, "Segredos de um Escândalo", amparado por duas atrizes em plena forma dramatúrgica como Julianne Moore e Natalie Portman. São elas que comandam o espetáculo, que fazem cada cena valer cada centavo pago pelo espectador. 

Apesar da história ser simples, a de Gracie (Julianne Moore), uma professora de 37 anos que se apaixona, engravida e se casa com Joe (Charles Melton), um aluno da sétima série de apenas 13 anos de idade, tem muitas camadas que aos poucos vão aparecendo, já que tudo se desenvolve vinte anos depois desse escândalo de escala nacional, cujo resultado mais imediato foi a prisão de Gracie em flagrante fazendo sexo com um menor de idade. A história é ressuscitada quando uma atriz, Elizabeth Berry (Natalie Portman), vai fazer um laboratório para poder interpretar Gracie no cinema. Chegou a hora da tal realidade virar ficção. Nessa confusão, a maior dificuldade de Elizabeth é tentar entender a situação do passado do casal Gracie e Joe, tendo de quebra um presente já bem diferente, depois dos muitos anos transcorridos do início do romance entre uma professora madura e um menino entrando na adolescência.
 
Para além do mérito das atrizes principais, tem Todd Haynes, um diretor que não fica para trás ao escalar cada degrau desse drama com sutileza, escorado por um roteiro bem estruturado de Samy Burch, ainda que alguns personagens sejam pouco trabalhados no geral. A impressão que tive é que "Segredos de um Escândalo" poderia ser uma série, para que fosse trabalhada algumas camadas que a história apresenta e deixa no ar, como a dos filhos de Gracie, a infância dela, a vida do ex-marido, a da relação entre atriz/diretor do filme e o próprio início do romance do casal. 

Mas Todd Haynes sabe como dirigir esse drama, e surpreendentemente foge de suas construções melodramáticas sofisticadas, inspiradas em Douglas Sirk, para realizar uma obra mais seca, que imageticamente flerta com doses de realismo, em que a fotografia não traduz uma atmosfera contraditória, como em "Longe do Paraíso" ou "Carol", onde um mundo burguês ideal, glamourizado, artificial e belo na aparência, despenca, mostrando uma fragilidade que lhe era intrínseca. Em "Segredos de um escândalo" há até algumas cenas bem escuras. Fotograficamente, gosto em especial da cena em que Elizabeth conversa com George, o filho de Gracie do primeiro casamento, em um bar, onde por detrás, avistamos uma rua iluminada com uma luz vívida, enquanto no primeiro plano eles conversam em um ambiente sombrio sobre temas mais sombrios ainda. Ou ainda podemos nos reportar a cena em que Elizabeth visita Joe no trabalho e a imagem é igualmente escura, como se aquela conversa fosse à escondida.    

Em paralelo ao sombrio e a um drama realista, Todd Haynes não abre mão de alimentar um quê de simbólico em sua narrativa, especialmente depositado no personagem de Joe, que tem em casa um criadouro de borboletas. A ideia de casulo, está ali desde a primeira cena e permanecerá sendo evocada por Haynes até o fim. São planos de lagartas, casulos e borboletas em franca transformação e absortas em suas fragilidades. É inevitável não relacionarmos essas imagens aos acontecimentos da vida do próprio Joe, assim como a sua súbita relação com Elizabeth, que em cada possibilidade flerta discretamente com ele.
 
No geral, "Segredos de um Escândalo" é um romance impactante, desde antes a chegada de Elizabeth, Todd Haynes já cria uma atmosfera inquieta, de apreensão na família de Gracie, afinal, a sua vida se transformará em um filme, enquanto ela e o marido serão personagens interpretados por atores. A impressão que ficamos a princípio é que a vida de Gracie parece um conto de fadas, envolta pelo amor de Joe e a aceitação de todos. 

Mas aos poucos, as certezas vão desabando, sem jamais desabar de verdade, embora as estruturas que dão força a essa relação parecem estar abaladas pelos vinte anos. A presença da atriz que a viverá no cinema é em si demolidora e realidade e ficção se convidam a dançar pelas lentes ácidas de Todd Haynes. Como interpretar Gracie e ficar distante de Joe? Elizabeth é uma atriz sensível e isso pode ser um problema sério para os três personagens. Gracie é visivelmente dominadora, uma ótima caçadora, sabe o que quer e precisa controlar a situação, embora já não consiga esconder fragilidades eminentes, os choros constantes estão a dizer exatamente isso. 

Quando Haynes enfim põe as duas em um espelho e Gracie começa a dizer quais os produtos usa no rosto, qual cor de batom lhe agrada, entre outras coisas, a imagem do duplo se revela, passado e presente se encontram, tal como Elizabet Vogler (reparem a coincidência do nome) e Alma de "Persona", do mestre Ingmar Bergman (crítica desse filme no link: https://cinefialho.blogspot.com/2018/08/texto-escrito-por-marco-fialho-para-o.html?m=1 ), duas imagens cuja ideia é ser uma só no filme sueco, enquanto em "Segredos de um escândalo" as imagens remetem a visíveis diferenças geracionais. Passado e presente se chocam nas imagens face a face dessas duas mulheres, não há simbiose como em Bergman, mas uma distância abissal entre uma jovem e uma mulher madura. Todd Haynes expõe as marcas da infância e da alma de Gracie, de uma violência doméstica sofrida e Elizabeth fica sabendo desse recalque. Quais são os limites entre a vida e a sua representação? O que se deve levar para a ficção da vida real? Por que um recorte será preciso ser feito, a busca por uma essência vinda da realidade.

Haynes sabe jogar com as minúcias psicológicas da personagem e mais uma vez usa o contraste entre sombra e luz numa cena quase final para colocar Joe no escuro do quarto enquanto Gracie está repleta de luz no banheiro. Ele foi um jovem sem adolescência, sem dúvida, e ela teve um amante jovial durante o seu período como mulher madura. Mas o escândalo que tomou há vinte anos atrás os jornais precisa também ser questionado, pois o inverso acontece muito e é naturalizado ao extremo pela sociedade. É  fato que homens maduros se casam ou se amigam com meninas, ainda adolescentes, não é algo tão raro assim em nossa sociedade. O tratamento é o mesmo quando mulheres maduras se envolvem com rapazes bem mais jovens? São perguntas que Haynes deixa para a plateia.

Quando Todd Haynes entra no universo da ficção, já com Elizabeth interpretando Gracie, vemos uma cena sendo repetida exaustivamente e quando a cena para o diretor fica boa, a atriz pede para fazer mais uma repetição e que a cena pode ficar mais real ainda. Essa é a chave entre os dois domínios, o da ficção (do cinema) e o da realidade. No primeiro existe algo da ordem do ilimitado, que se pode recriar indefinidamente até se achar um resultado satisfatório. Já a realidade é da esfera do limitado, o que foi vivido não volta mais, é algo da ordem do imutável. Para mim, eis a chave para se adentrar em "Segredos de um Escândalo", perceber a natureza diversa e constituinte de cada uma dessas esferas colocadas por Todd Haynes.                                     

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