Texto de Marco Fialho
"O espaço é uma acumulação desigual de tempo" Milton Santos
São seis horas da manhã. As primeiras luzes do amanhecer me avisam que o dia está nascendo. A alvorada anuncia ainda que fui dormir mais de duas horas da manhã e que talvez meu dia, em algum momento, esteja prejudicado por uma noite mal dormida. Sim, ontem foi dia de presenciar minha décima abertura da Mostra de Cinema de Tiradentes, das 27 edições já realizadas pela Universo Produções.
A temática desta 27ª Mostra traz o tempo como protagonista. É curioso que eu tenha acordado às seis da manhã, já tomado meu banho e esteja sentado à frente de um computador tentando imaginar como será meu tempo futuro, entre debates já projetados pela produção do evento, mas ainda para serem vividos, tendo que paralelamente projetar o estado do meu corpo lá no final do dia.
Mas preciso agora voltar não para o futuro, mas sim para o passado, esse ontem que tomou meu tempo e o tornou mais caótico ainda. Deve ser as tais formas do tempo que a curadoria da Mostra de Cinema de Tiradentes pensou para refletir sobre o nosso tempo de hoje, de outrora e o porvir. Ontem depois dos filmes de abertura (falaremos ainda deles, embora já estejamos aqui versando sobre eles), teve aquela festa onde ainda tento, em vão, processar as conversas e os dois filmes que embaralharam com a nossa ideia de tempo. Como dormir, quando a cabeça fica ainda imersa pelos filmes mágicos de ontem, que mesmo sem apelar para um carro-máquina, bem ao estilo "De Volta para o futuro", desnortearam minha visão.
Tudo aqui caminha como se fora uma crônica e talvez esse formato até caia bem à situação, pois estamos a falar de André Novais Oliveira, o cineasta que passou a vida a pensar acerca do cotidiano da periferia de Contagem (MG), sua cidade e território para o qual dedicou todos os filmes que realizou. "Roubar um plano", em parceria com o amigo diretor Lincoln Péricles, se passa em São Paulo e brevemente em Contagem. Mas será mesmo? O que esse filme evoca a todo instante é mesmo Contagem, em um dos extracampos mais bonitos do cinema brasileiro. Como filmar uma cidade estando em outra? Assim, o personagem de Renato Novais Oliveira se sente, como um homem desesperado de saudade de sua casa e sua gente. O seu pensamento está no passado e no futuro, o presente é só uma pedra a ser demovida da sua frente.
Mas eis que chega "Quando aqui", filme que revisita tempos pessoais (memórias), históricas e fantásticas, a visitar um futuro que embora imaginado, será de alguma forma efetivo. André permite que sejamos visitados por um tempo ancestral, indígena e preto, afinal, um espaço sempre estará ancorado por um tempo do presente, do passado ou do futuro. Um filme que brinca com as fendas temporais, que mostra como o tempo da memória, tanto a coletiva quanto individual possui uma flexibilidade infinita, em um eterno mix onde o espaço ganha uma outra dimensão. O que sobra do que vivemos? Fotos, filmes, memórias fugidias? E não podemos esquecer das memórias dos que mais viveram e das que a ancestralidade nos legou. E o que era o espaço que vivemos hoje há 7.000 anos atrás? É o cinema nos pondo menores do que um inseto ao expandir a nossa percepção sobre nosso estar neste mundo. É isso que "Quando aqui" faz conosco, a forçar um redimensionamento da nossa presença e da nossa relevância egocêntrica perante a tudo que veio antes e ao que ainda virá daqui a mais de cem anos.
Em "Quando aqui", cinema se torna patrimônio histórico, vivo, uma mistura de elementos fantásticos com uma crônica do cotidiano ao melhor estilo do cinema de André Novais Oliveira. De repente, o maravilhoso curta "Quintal" (2015) se emaranha com o longa "Ela Volta na Quinta" (2014), uma maneira cinematográfica de evocação do passado, de juntar novamente a família em um novo filme. "Quando aqui" traz os pais D. Zezé e Seu Norberto para o presente fílmico e imaginário, uma maneira de instaurar a poética de um cotidiano fantástico que tão bem casa com a filmografia não só de André mas também da própria produtora Filmes de Plástico.
"Quando aqui" é um belo retorno de André ao seu passado, inclusive cinematográfico. O diretor de "O dia que te conheci" e "Temporada" consegue falar de um passado sem ser nostálgico e de um futuro sem ser esperançoso ou desesperançoso, que seriam apelos fáceis para qualquer diretor. Esses subterfúgios não existem, o que existe são perspectivas reflexivas sobre a natureza do tempo e para além da própria fenomenologia de Husserl, que limita os fenômenos à consciência. André parte de uma ideia autocentrada para depois se desgarrar dela e expandi-la como eterna construção. Mas nota-se o quanto "Roubar um plano" está inteiramente agarrado à consciência de Renato e a sua vivência, o que cria uma distância filosófica entre eles. O que importa é o quanto esse homem está preso à sua memória. Por mais que ele esteja em São Paulo fisicamente, espiritualmente ele está em sua Contagem querida, pensando no quiabo com angu da tia. Já "Quando aqui" parte da casa que foi protagonista de "Ela Volta na Quinta", para falar da sua finitude, ou melhor, da sua transformação em outras histórias que ali serão contadas, assim como tantas outras já passaram por ali antes de sua família.
As soluções narrativas de André Novais Oliveira são criativas, simples, porém ousadas, por trazer camadas temporais dentro da própria imagem. Os inserts temporais vão se sobrepondo e desafiando a ordem cronológica e cartesiana que habitualmente pensamos o tempo. Se o espaço é uno (será mesmo?), o tempo expressa a multiplicidade. Assim como eu estou a pensar no debate que ocorrerá hoje à tarde sobre a obra desse cineasta mineiro que está sendo homenageado agora em 2024 e a divagar sobre o que será dito. Agora já são quase nove horas da manhã, e estou a pensar como terminar esse texto que eu queria que fosse infinito para eu poder morar definitivamente nesses filmes. Penso ainda porque não arrumo minhas malas e vou-me embora, afinal, o que fazer depois de me sentir tão contemplado com esses dois curtos filmes? Talvez a minha eterna curiosidade de querer ver mais e mais, de querer saber quantos filmes vão me impactar como estes estremeceram e desestabilizaram a minha espinha dorsal. Mas antes de tudo, voltemos para a reflexão sobre o espaço e o tempo, pelo menos para encerrar nossa primeira participação na mostra.
A Mostra é um bom exemplo, aqui o espaço da Tenda e do Centro Cultural servem como sustentáculos para diversas experiências do tempo. Jamais apreenderemos tudo que está posto para nós, a experiência é sempre restrita a um espaço. Nos instauramos nele, enquanto minha memória me leva para diversas temporalidades. O cinema de André está muito bem fincado filosoficamente ao perscrutar o tempo e suas vertentes infinitas. Tempo é expansão, por mais que o espaço tente restringir as experiências a ele. André está a vasculhar a um só tempo com o cinema, a memória, a saudade do que vivemos, mas sem esquecer que nada começou em nós, nem terminará em nós. Se "Roubar um plano" fala de uma ausência e de uma memória que não quer calar, que está circunscrita ao corpo (no caso, no corpo de Renato), "Quando aqui" remete ao infinito (ad infinitum), a um tempo que nos arremessa tanto para trás quanto para frente. André fez esse filme agora em janeiro, em um tempo recorde, e nos interroga de quanto tempo precisamos para sermos geniais? Aqui no caso específico de André, está provado que não muito. E infelizmente, já deu a minha hora e preciso tomar o café da manhã, me arrumar e partir, para poder encarar mais um dia, que por enquanto é só mistério.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!