Texto de Marco Fialho
A primeira imagem não resta dúvida: populares circulam pela Estação ferroviária do Riachuelo, enquanto ouvimos uma música de Tibor Fittel, que sugere uma tranquilidade para quem vive nesse território. Daí, já ficamos sabendo que "Mais um dia, Zona Norte", dirigido por Allan Ribeiro, é um filme sobre o subúrbio carioca. Tudo é filmado como se o diretor filmasse um documentário. Eu diria que no plano da forma tudo lembra o documental enquanto que dramaturgicamente, tudo se aproxima do ficcional. Não se estabelece uma fricção, antes uma relação harmoniosa entre esses elementos narrativos.
São vários personagens suburbanos que acompanhamos em suas rotinas de trabalho e lazer. Uma gari que trabalha para a Prefeitura do Rio; um exótico locutor que tenta atrair cliente para uma loja de variedades vestido com uma fantasia de super herói suburbano muito engraçado; uma passista de uma pequena Escola de Samba; um camelô que vende LPs, CDs e DVDs em uma banquinha na rua.
O grande barato de "Mais um dia, Zona Norte" é como Allan Ribeiro casa os personagens com o espaço suburbano. Como o título evoca, o território está presente como personagem, como um ente capaz de emanar uma voz, de expressar uma cultura, ou melhor, uma profusão de culturas e cores. Desvelar a poética das ruas, das casas populares repletas de cores, brilhos e som. Não dá para tentar captar o que é o subúrbio carioca sem ouvir os seus sons tão característicos, o que para mim soa como algo familiar, porque eu também venho desse território, me criei em parte nesse território.
Outro acerto de Allan Ribeiro é o de retratar o subúrbio em seu cotidiano, daí a sua aparência documental ser tão marcante. É inevitável, justamente nesse ponto, não referenciar o filme com outras obras como o clássico de Nelson Pereira dos Santos que o título quase emula, ou com as obras do realizador mineiro André Novais Oliveira ("Temporada" e "O dia que te conheci"), em sua ressignificação de um realismo periférico, com personagens populares do tipo que encontramos facilmente ao andarmos pelas ruas.
Adentrar no subúrbio carioca é buscar uma relação com os espaços de lazer específicos, como a interação com os viadutos, a exemplo do baile charme de Madureira e do animado e performático bar gay em Cascadura. Como falar dessa paisagem sem mencionar a proliferação dos ambulantes que fazem de tudo para vender seus produtos no trem em busca da sobrevivência.
O bom suburbano gosta de sonhar, os sonhos são a matéria-prima de uma população que muitas vezes quer sair desse território, mas sem jamais deixar de fazer feliz o cotidiano de trabalho, que sempre projeta a cerveja do final do dia. Por isso, o humor está presente na vida suburbana, um território que valoriza o agora. Ótima a cena em que o personagem do herói suburbano, já sem a fantasia-uniforme, em um show no formato stand-up comedy, conta a sua história, sem deixar de comentar o próprio filme, em um bonito momento onde o filme é revelado pelo personagem.
O mais incrível de "Mais um dia, Zona Norte" é como Allan Ribeiro traz personagens reais para o universo ficcional. Há algo de surpreendente, de como o diretor consegue transmuta-los para o ambiente dramático, de encenarem a si mesmos na tela. Esse é um dispositivo que para operar precisa estar muito bem cuidado e Allan Ribeiro realiza com maestria esse movimento dramatúrgico. "Mais um dia, Zona Norte" encanta tanto pela simplicidade quanto pelo calor que irradia de cada plano. Esse é um filme vivo, que pulsa em nossas veias, mesmo depois do término da projeção. Eu fiquei a perguntar: será que é isso mesmo, ou eu, como suburbano me identifiquei para lá da conta?
É isso mesmo, meu amigo. Acredito profundamente que identificação aqui não está só na subjetividade de quem vê. Mérito do filme.
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