Texto de Marco Fialho
O que mais chama a atenção em "Maças no escuro" é o caráter performático da sua proposta de mise-en-scène. Nele, Aquino, líder do grupo teatral Arruaça, está no centro do filme, em uma espécie de ficcionalização de um documentário experimental, a partir da ideia do diretor Tiago A. Neves de simular uma entrevista de uma emissora estrangeira do artista Aquino.
Claro que esse ponto de partida é notoriamente fake, assim como quase tudo que vemos na tela. A atmosfera é permeada por um sarcasmo constante, como se o filme não levasse a série tanto o seu objeto quanto a maneira de filma-lo. Logo de cara, vemos o jornalista estrangeiro entrevistando Aquino e algo soa estranho, já que as perguntas não são traduzidas adequadamente, com o tradutor modificando o teor de tudo que é perguntado.
A seguir, o ambiente performático se instaura, com uma festa comemorativa dos 35 anos do grupo teatral Arruaça, com vinhos ordinários sendo servidos em rótulos de vinhos caros. Vários acontecimentos vão se sucedendo, como Aquino pintar com os dedos um quadro fazendo movimentos circulares aleatórios.
Em meio uma narrativa propositalmente anárquica e desestruturada, quase que aos solavancos, "Maças no escuro" vai em seu desleixo pinçando tiradas extraordinárias e criativas. Por isso, não pode se deixar levar pelas aparências ou pelo que é vendido por uma estrutura que parece caótica, quando no fundo existe uma postura estilística em construção, calcada no pensamento rebelde de Aquino. A câmera parece querer ratificar a atitude iconoclasta do protagonista.
Dessa forma, "Maças no escuro" vai esboçando um perfil não só do teatrólogo Aquino como questiona constantemente o papel do artista independente na sociedade. Mais do que retratar Aquino, o filme se permite embarcar nas sua performatividade. Bom lembrar, que o filme foi rodado no ABC paulista, mais precisamente em Diadema, cidade que já ensejou as maiores fábricas automotivas, que serviram de base para o surgimento da maior liderança popular da história política brasileira, Lula, o nosso atual presidente da república.
Embora "Maças no escuro" não tente construir uma ideia pré-concebida ou conclusa de Aquino, a forma desordenada como Tiago A. Neves permite que o protagonista performe a todo o momento em que a câmera está ligada, como se o mero acionamento do rec mobilizasse o modo artista de Aquino. O filme ainda acompanha em algumas cenas, Mônica, uma das atrizes do grupo Arruaça em sua tentativa de lidar com a personalidade imprevisível do artista de Diadema. Nesse momento conseguimos adentrar na persona Aquino a partir dessa mulher, e também ter uma visão mais ampla acerca das dificuldades pelas quais passam os artistas independentes no Brasil, que precisam conciliar vida pessoal e artística.
Quanto mais a narrativa avança, dá para perceber que pouco importa se perguntar como o filme tenta se organizar, ou como um filme francamente experimental, como um documentário mais livre ou se tudo não passa de uma ficção performática que parte de um artista real que se permite embarcar numa viagem pelas lentes do cinema. E o que dizer da camada cômica que o filme encampa sem o menor constrangimento?
Tiago A. Neves, cena a cena, vai descortinando "Maças no escuro" por um viés cada vez mais analítico, vai lentamente fazendo com que Aquino reflita sobre a vida, o fazer artístico e o processo que culmina na realização em si de uma obra. Um dos pensamentos mais interessantes do filme é quando Aquino começa a refletir sobre a própria natureza do existir do teatro. Resumidamente, ele diz que em um espetáculo, pode faltar tudo, cadeira, luz, ator, diretor, menos o público.
Porém, as frases lapidares não são poucas. Ao se encerrar a encenação de uma peça, o diretor abre para que os espectadores façam perguntas sobre o que viram. Uma das pessoas então pergunta o que era uma máscara que estava lá no palco, mas aparentemente não tinha nenhuma função dramática. Eis que Aquino lhe responde que era isso mesmo, que nem tudo o que vemos quer dizer algo.
A meu ver, depois que vemos as cenas explosivas que acontecem no teatro, o filme poderia logo a seguir se encerrar, já que esse seria um momento catártico perfeito para preparar o encerramento de um filme que tentou provocar o seu protagonista para ele chegar ao ápice de sua performance. O descortinar de um equívoco de personagem a ser entrevistado pela TV estrangeira funciona como mais um artifício esperto e bem pensado por Tiago A. Neves, ainda mais que esse suposto erro coloca frontalmente o teatro comercial com o independente, em mais uma sacada que abusa do humor. A busca do túmulo da mãe, nesse contexto joga o filme para um deslocamento de si mesmo, já que o central de toda a narrativa foi o processo de Aquino. O drama aqui, no último suspiro, soou indigesto.
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