Texto de Marco Fialho
Um dos elementos dramáticos dos mais interessantes de um certo tipo de cinema contemporâneo brasileiro está na maneira como mistura realidade e sonho. Ou que trata muitas vezes o onírico dentro de uma abordagem realista. Creio que Guto Parente, cineasta remanescente do coletivo Alumbramento tem nos oferecido exatamente isso ultimamente. Cinema como sonho ou instrumento para investigação da realidade? Guto Parente parece não se importar com essas clivagens aprisionantes ao investir em uma narrativa cujos limites ele joga para o público.
Digo isso porque a tarefa de tentar buscar as demarcações de sonho e realidade são arremessadas para o colo do espectador, sem quaisquer dramas. Ao final, cabe a nós, caso queira, apelar à memória e buscar ligar pontos ou narrativas. Esse ponto, nada arbitrário do ponto de vista narrativo, me cria um algo a mais para continuar com o filme, como não só uma compilação de histórias contadas, mas também como partícipe da minha experiência de vida.
Dito isso, creio que o próprio contexto da pandemia que o filme adentra com muito cuidado, inclusive para não deixar que esse fato tão marcante para cada um de nós, se tornasse um óbice para a própria fruição do filme, embora crie um clima perturbador crucial para que adentremos nessa história tão comum quanto absurda de um filho que tenta se aproximar de seu pai. O clima enevoado é agravado por alguns closes que estão ali mais para atordoar do que para explicar algo, assim como o som sempre explorado em suas possibilidades estonteantes.
Guto Parente sabe mergulhar no infinito mistério de que cinema em última instância é sonho, assim ele consegue brincar com o tempo, pois se a princípio temos tudo muito mapeado, inclusive historicamente, pois estamos ali nos primeiros momentos da entrada do Brasil na pandemia da Covid-19, lá pelo final já não temos certeza da época na qual onde estamos, já que no ambiente do sonho tudo pode acontecer.
"Estranho Caminho" não deixa de ser um filme de personagem, de David (Lucas Limeira em ótima performance), um jovem que mora em Lisboa e que volta à Fortaleza para lançar o seu primeiro longa, mas cuja tarefa torna-se inviabilizada pelo rápido avanço da Covid-19 no país. Ele é um cineasta voltado para o experimental e esse é mais um elemento que se soma à personalidade dele e do próprio filme de Guto Parente. David quer aproveitar o ensejo e tentar uma reconciliação com o pai, Geraldo (o sempre soberbo Carlos Francisco), dono de uma personalidade introvertida e explosiva.
Mas qual seria o momento da virada de chave, aquele em perdemos as margens fronteiriças entre sonho e realidade no filme? Essa é a grande questão de "Estranho caminho", a do instante em que a ficha cai para o espectador acerca dessa delimitação entre o real e o imaginado/sonhado. Mas talvez esse seja o maior triunfo do filme, nos arremessar em uma atmosfera psíquica compatível ao que vivemos na pandemia, quando mal sabíamos sobre limites, segurança sanitária e mental.
Talvez "Estranho Caminho" seja um documento perfeito sobre um tempo que queremos esquecer, que se utiliza de uma utensilagem mental e psíquica de uma época recente para falar de temas mais abrangentes e profundos de um indivíduo, no caso David, de uma questão afetiva pungente, a da relação entre pai e filho no mundo contemporâneo. Também dessa mediação dos dispositivos eletrônicos portáteis que tentam aproximar sempre o que na verdade é longínquo. David precisa deles para falar com a companheira que está em Lisboa ou com a mãe igualmente distante. E o que está perto, avizinhado, o que fazer dele ou com ele?
E as respostas? Talvez elas não existam, pois a vida é um labirinto sem volta que não sabemos nunca o que encontraremos depois da próxima curva. Dentre tantas coisas, fica ainda martelando o epitáfio incrustado em um túmulo qualquer: "que estranho caminho eu tive que percorrer para chegar até você". Os bons filmes são assim, deixam mais perguntas e dúvidas do que respostas, lições de moral ou discursos prontos para o conforto geral.
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