Pular para o conteúdo principal

DOR FANTASMA - romance de Rafael Gallo



Texto de Marco Fialho

Mais uma vez abro uma exceção para escrever sobre um romance aqui na minha página, o que realmente é pouco usual. Confesso que alguns detalhes que me são caros ressoaram pungentemente enquanto lia e pensava acerca da estrutura narrativa de "Dor fantasma". O livro simplesmente foi o vencedor do prêmio literário José Saramago de 2022 e reafirma o seu autor como um dos grandes escritores do país.

"Dor fantasma" possui uma fina autoironia, pois a história de Rômulo Castelo permeada pela obsessão da perfeição pode ser narrativamente partilhada por nós no decorrer da leitura da prosa de Gallo. Só me dei conta dessa possível autoironia lá no fim do segundo terço do livro. São inúmeras nuances, detalhes da personalidade de Castelo desnudadas a cada nova página do livro, como se submergíssemos em camadas profundas que lentamente se afloram. Interessante como a obsessão à perfeição de Castelo se equivale ao rigor métrico e musical da escritura de Gallo, igualmente obsessiva e detalhista ao extremo. Castelo na execução musical e Rafael Gallo na escritura do livro se equivalem, pois como narrar uma história dessas sem se ter a sua correspondência literária? Vale lembrar que em "Dor fantasma", o autor junta duas de suas maiores paixões: a música e a literatura.

"Dor fantasma" propõe, de uma só vez, um objetivismo das ações do romance contrapostas a mais feroz subjetividade na abordagem do personagem de Rômulo Castelo. Essa contraposição confere ao livro um constante estranhamento ao leitor. Mas cabe examinar essas duas vertentes do livro em separado e depois seu efeito em conjunto, para se poder perscrutar o mínimo que se pode se reter dessa obra de rigor estilístico poucas vezes visto.       

Mas antes de voltar a falar de Rômulo Castelo, de objetivismo e de subjetivismo, quero mencionar outra característica simbiótica que observei durante a leitura desse precioso livro: o aspecto cinematográfico que essa obra irradia. Eu sorvi alegremente "Dor fantasmas" em seus curtos capítulos, tais como cenas de um filme, uma mescla que esmiúça presentes visuais e sonoros em um pari passu que cadencia a incrível derrocada de um homem autossuficiente e cego ao mundo, mas que acredita em uma clarividente visão sobre si mesmo, tão fatal como um eficiente veneno. 

Vale observar a maneira como Gallo descreve os ambientes, como se a sua escrita delimitasse o espaço da mise-en-scène a ser descoberto por uma câmera de cinema. Os pensamentos de Castelo são desvendados por ações oniscientes que revelam o seu caráter e a forma pela qual apreende o mundo. A obsessão de Gallo não cessa nas imagens que cria, mas também pelos sons e silêncios que impressionam desde os primeiros parágrafos. Este é um livro para ouvir os sons que ele emana e são tantos, alguns vigorosos, outros para serem contemplados pelos mais atentos dos ouvidos. E como é raro se defrontar com um processo desse, no qual precisamos afinar os ouvidos para poder penetrar nas mais partes mais duras da ossatura narrativa de seu autor.     

Enfim, "Dor fantasma" tem parentesco com aqueles filmes que precisamos atiçar todos os sentidos. É intenso, mas jamais apelativo. Sabe-se construir no tom certo, seco, áspero para os sentidos, afinal buscar-se a perfeição tem seu preço e escrever sobre ela não fica para trás. Quando achamos que Gallo enfim vai esmorecer seu Rômulo Castelo, eis que tudo não passa de uma ilusão. Aqui, o limite extremo é o alvo, nada se negocia e isto é impressionante tal como uma fera indomável e selvagem. E a escrita de Gallo também não se domestica jamais, ela é implacável com o personagem, o leva ao extremo, à radicalidade. Os ensinamentos paternos, severos, foram introjetados, assimilados para serem seguidos até o fim, custe o que custar, doa a quem doer, inclusive a si mesmo. 

O livro de Gallo transcreve com precisão máxima a cegueira de um homem que só vive o seu mundo, um solitário que não percebe o mundo, somente as metas que atribuiu a si mesmo. Eis a tragédia na qual esse personagem está sufocado. A métrica da música, do metrômetro a guiar os seus passos no mundo. Mas qual é a relação do autor com o seu personagem e de nós com ele? Talvez esse seja o maior presente de Gallo, a de ser fiel a seu personagem, de levá-lo até as últimas consequências. De certa maneira nos afeiçoamos a ele, o vemos em sua dor de levar uma saga insana e arcar com a coerente incoerência de viver a vida com tantos ideais inflexíveis. 

Afinal, quem é Castelo? Creio que a melhor hora que Gallo o transcreve é quando sai de seu universo puramente autocentrado e o lança no mundo. Sem dúvida, é no mundo o melhor lugar para defini-lo. Sim, porque apesar de todo esse desejo de autossuficiência, é no banheiro público que vem a melhor definição desse insólito personagem: "o destino de todo Castelo é ruir". Essa frase quase que dita em um momento de raiva, como uma manifestação de protesto, é significativa ao remeter a toda uma ideia de música perfeita, uma ideal, como uma cultura superior a todas as outras existentes. Uma maneira defasada de pensar a cultura em pleno século XXI. Castelo é a representação mais que escancarada dessa visão europeizada, decadente e colonialista. Sinteticamente, este é o ser humano Castelo, com suas contradições classistas e deslocadas, que vê no modelo clássico algo a ser almejado e alcançável. Um modelo aristocrático absorvido pelo hipócrita e vazio mundo burguês.   

"Dor fantasma" lança um olhar crítico acerca da busca paranoica do infalível ao realizar uma reflexão de que precisamos olhar para o mundo e não só para as nossas aspirações e desejos, um livro sobre o eu, não propriamente sobre o egocentrismo (aqui se colocaria uma dose virulenta de vaidade), mas sobre o autocentrismo, o de ver o mundo a partir de suas demandas pessoais e levar isso ao máximo. É a crença que se fizermos "tudo como dever ser" atingimos nossos objetivos mais intransponíveis, como os foram para Castelo tocar a peça intocável de Franz Liszt. "O zelo exige o rigor", a frase síntese desse belo livro, não tergiversar sobre o erro, a correção implacável é imprescindível. Um livro sobre o auto aprisionamento, sobre aceitar para si o impossível como meta de vida. Ao término de "Dor fantasma" me pus às seguintes perguntas: como seria o mundo se o pensássemos apenas pelas nossas metas pessoais, como se todo o resto não existisse? É possível viver e abstrair-se do mundo?

Comentários

  1. Quando um livro se supera ainda mais pelo que provoca na boa crítica. Que texto! O livro é infinito! A boa crítica é merecida! - Taíssa Barreira

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...