Texto de Marco Fialho
"Pajeú" é mais um exemplo de filme brasileiro que infelizmente quase não teve oportunidade para ser visto. Agora, ganha uma nova chance ao ser incluído no catálogo da plataforma da Filmicca. Essa é uma obra dotada de uma grande precisão e concisão, a começar pela duração de apenas 74 minutos, em que o diretor Pedro Diógenes consegue concentrar e dizer muito nesse reduzido tempo.
A história é quase um fio de nada, mas isso não quer dizer que ela seja banal, muito pelo contrário. Durante o filme acompanhamos Maristela (uma ótima Fátima Muniz, me pergunto intrigado porque não vejo mais filmes com essa pérola de atriz), uma jovem professora que sente necessidade de estudar a história do quase morto rio pajeú. Ela tem pesadelos com ele e esses sonhos são uma espécie de alegorias sobre o seu atual estado decrépito. Maristela mora com um amigo gay (o carismático Yuri Yamamoto) que serve de escuta e amparo psicológico para as suas angústias perante à vida, pois ver o rio sofrer lhe faz muito mal e visivelmente ela carrega essa dor consigo.
Tudo aqui passa ao largo do convencional. A narrativa se apresenta em seu hibridismo, ora como ficção ora como documental. Maristela sai às ruas colhendo depoimentos verdadeiros sobre o riacho pajeú, pesquisa sobre o seu curso original e é surpreendente como o próprio rio tenta fluir pela narrativa, e flui. Já que Maristela sabe que não pode mais salvar o rio, quer ao menos lutar pela sua memória. Vai atrás de pesquisadores da cidade de Fortaleza e depois vai à praia para indagar às pessoas sobre o rio. O rio, com certeza, junto com Maristela, é o maior protagonista dessa história.
De repente, o filme está em outro lugar. A reflexão sobre o rio leva para o seu processo de esquecimento mas também para a memória sobre nós mesmos, sobre a atenção que é dada tanto ao rio quanto a nós, como podemos pensar a nossa vida por meio do próprio rio, assassinado lentamente, ao longo dos anos, pela tal força do progresso econômico inerente ao desenvolvimento desenfreado das grandes cidades. E as perguntas vão passando pelas nossas cabeças: somos prioridade para os governantes ou estamos tão esquecidos quanto o rio pajeú? O filme assim sai da ficção e cai na realidade, na vida da cidade e como ela é vista pelos seus habitantes. O momento das entrevistas na praia, com Maristela entrevistando aleatoriamente os banhistas é impressionante. É como se o filme conseguisse provocar uma transformação imediata na realidade, interferir nela de maneira potente. A praia, então, deixa de ser um mero lazer e passa a ser um território de muita reflexão. Esse é o poder do cinema que Diógenes instaura, o de instigar a realidade, as pessoas reais que estão lá, que logo se percebem valorizados pela filmagem.
Mas o que seria de "pajeú" sem a trilha sonora magnífica de Vitor C. e Diego Maia, que constitui um fascinante diálogo com o filme. Em muitos momentos ela está presente para incomodar, para sublinhar uma ranhura narrativa e compor com a imagem uma confrontação na percepção do espectador. O som, aliás, sempre foi um ponto alto nas narrativas do coletivo alumbramento, do qual o diretor Pedro Diógenes é egresso, assim como o montador Guto Parente, que aqui também está na mesma função (lembrando que em "Inferninho", ele foi codiretor).
E o que dizer das músicas, das trilhas maravilhosas vindas do karaokê em alguns momentos do filme? A verdade é que quando o ator Yuri Yamamoto canta uma música de Sueli Costa, o mundo desaba com ele, e o de Maristela também. Talvez ali em pleno exercício do ápice de sua interpretação no filme, a revelar uma dor profunda. Outro momento sublime no karaokê é no final, quando a própria Maristela canta uma música de autoria dos próprios Vitor C. e Diego Maia. É de arrepiar. Diógenes, como já havia feito em "Inferninho", sabe usar a música para dar uma camada poderosa de expressividade em sua obra. Um feito para poucos, somente para os diretores mais sensíveis.
"pajeú é ainda uma poderosa obra ecológica, apesar de não panfletária, mais poética, musical, fantástica, alegórica e sublime. Um filme que sabe usar da simplicidade, dos poucos recursos e abusar da criatividade e do amor pela vida em seus detalhes mais sutis. Trazer à tona o rio, ir atrás dele como Maristela faz, falar dele, mesmo que a própria cidade já o tenha esquecido é um ato de amor profundo pelo território, é mostrar o quanto ele pode ser outra coisa.
Esse é o ponto crucial. "pajeú" evidencia o quanto a vida pode ser mais do que a loucura insana da especulação imobiliária, que destrói a vida para concretar a cidade e fazer dela uma infinda falsa promessa de recomeço. "pajeú" é sim um grito, mas também sabe entregar junto uma poesia e um caminho para que possamos nos reconectar com o passado. "pajeú" formou a cidade, que agora o renegou para viver sem memória. Mais um capítulo, dentre tantos, sobre os apagamentos históricos e culturais cotidianos de uma cidade, de um país. Tristes tempos. E por isso mesmo, viva as lágrimas sinceras de Maristela, que não aguenta mais os pesadelos com os monstros que poluíram e canalizaram o riacho pajeú para decretar a tristeza e o isolamento em nome da ambição e da riqueza.
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