Pular para o conteúdo principal

O MUNDO DEPOIS DE NÓS (2023) Dir. Sam Esmail


Texto de Marco Fialho

"O Mundo depois de nós", dirigido por Sam Esmail, é um drama político e distópico envolto em um formato de um filme de suspense ao modo M. Night Shyamalan. Durante todo o filme só temos a visão de duas famílias: uma branca formada pelo casal Amanda (Julia Roberts) e Clay (Ethan Haw), com seus dois filhos, e um pai (G.H.) e uma filha (Ruth), ambos negros. Pensar sobre essas perspectiva é importante para início de uma reflexão sobre o filme.   

Um dos aspectos que mais me agrada no filme é a sua capacidade de promover uma análise profunda sobre as bases que sustentam a atual sociedade norte-americana. A obra pode servir como uma ácida metáfora sobre os valores estruturantes do mundo ocidental do século XXI: o individualismo, o discurso de ódio, o consumo desenfreado, os privilégios de classe, o controle político pelas mídias (TVs, internet, redes sociais), a desconfiança mútua oriunda de uma mentalidade competitiva, agressiva, racista, arrivista e egoísta são alguns temas que perpassam a própria maneira pela qual a sociedade está organizada. Como o mundo está cada vez mais globalizado, pode-se estender essa crítica que o filme realiza para a cultura de outros países.  

Vale registrar que acessei o perfil da Netflix Brasil no Instagram e li muitas reclamações do público em relação ao filme, isso logo nos primeiros dias após o lançamento. Dizem os injuriados assinantes, que o filme não tem pé nem cabeça (essa é a reclamação mais comum) e que a obra tem um final horroroso, que não resolve nada e deixa tudo sem resposta. Por minha vez, fiquei a pensar sobre o assunto e cheguei a conclusão de como deve ser complicado se olhar no espelho e ver onde chegamos como civilização. Pois é isso o que o filme faz, como disse certa vez Renato Russo na canção "Índios": "Nos deram um espelho e vimos um mundo doente, tentei chorar e não consegui". Enxergar a si mesmo realmente é uma tarefa para poucos. "O mundo depois de nós" nos fornece um espelho difícil de encarar, ele pede de nós uma autocrítica sobre como estamos aceitando o mundo como ele é.       

Não conseguir relacionar os fatos políticos que o filme coloca é um sinal de uma perigosa cegueira, de uma forma de deseducação pelo olhar, de não conseguir mais relacionar fatos que estão presentes explicitamente em um filme. Não é uma questão aqui de aceitar as diferenças de opinião, mas sim de não ver o que está no filme. Dizer que uma sociedade competitiva ou egoísta não prejudica o coletivo é um direito de cada um e revela uma determinada visão e posição acerca do mundo que vivemos, mas dizer que o filme é confuso e sem mensagem já é assumir que não procurou ligar os fatos estão lá presentes na projeção, o de um ataque sofrido pelos Estados Unidos por outros países. E o interessante em "O mundo depois de nós" é que não há atos heroicos para manter o espectador identificado. É meio cada personagem por si, se virando como pode, conseguindo uma aliança aqui e outra acolá, além de muitos nãos.  

Um dos encantos da narrativa é esconder o máximo de informações do espectador, que fica em pé de igualdade com os personagens, o que gera uma tensão, um suspense para todos. A sensação de estar desgarrado, de todos estarem sós, é fundamental para que possamos refletir o quanto estamos vivendo exatamente assim, uns distantes dos outros. Moramos tão colados de tantas pessoas e mesmo assim nos sentimos mais distantes do que nunca uns dos outros. O outro virou sempre a desconfiança a todo o instante. O filme fala disso, dos personagens e também de nós, de nosso mundo mais virtual e menos carnal, afinal, um mundo sem wi-fi é um mundo morto para nós do século XXI. Fala ainda do racismo de Amanda quando se defronta com uma situação com um homem e uma mulher negros, que eram donos da casa que alugou, os relega sem dó ao porão de sua própria casa. O que importa é o meu mundinho, e nada mais. 

Talvez aqui pudesse ter falado mais do filme em si, das interpretações bem sedimentadas, com destaque para o grande trabalho de Mahershala Ali (Green Book) como um homem negro bem-sucedido no mercado financeiro, ou de várias cenas simbolicamente significativas como as dos carros zero sem controle, desgovernados pelas estradas. Mas creio que a cena mais significativa é a fatídica da filha de Amanda e Clay achando um bunker na vizinhança e ficando feliz porque poderia enfim assistir ao capítulo final de "Friends", a sua série favorita, enquanto o mundo está prestes a acabar. Essa cena, lógico, contém ironia, além de ser bastante cáustica, mas bem mostra o quanto estamos perdidos e mergulhados em um individualismo doentio. Se você não entendeu essa zoada do diretor e roteirista Sam Esmail à humanidade, você realmente não entendeu nada do que viu. Paciência...     

Comentários

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras difere