Texto de Marco Fialho
"O Mundo depois de nós", dirigido por Sam Esmail, é um drama político e distópico envolto em um formato de um filme de suspense ao modo M. Night Shyamalan. Durante todo o filme só temos a visão de duas famílias: uma branca formada pelo casal Amanda (Julia Roberts) e Clay (Ethan Haw), com seus dois filhos, e um pai (G.H.) e uma filha (Ruth), ambos negros. Pensar sobre essas perspectiva é importante para início de uma reflexão sobre o filme.
Um dos aspectos que mais me agrada no filme é a sua capacidade de promover uma análise profunda sobre as bases que sustentam a atual sociedade norte-americana. A obra pode servir como uma ácida metáfora sobre os valores estruturantes do mundo ocidental do século XXI: o individualismo, o discurso de ódio, o consumo desenfreado, os privilégios de classe, o controle político pelas mídias (TVs, internet, redes sociais), a desconfiança mútua oriunda de uma mentalidade competitiva, agressiva, racista, arrivista e egoísta são alguns temas que perpassam a própria maneira pela qual a sociedade está organizada. Como o mundo está cada vez mais globalizado, pode-se estender essa crítica que o filme realiza para a cultura de outros países.
Vale registrar que acessei o perfil da Netflix Brasil no Instagram e li muitas reclamações do público em relação ao filme, isso logo nos primeiros dias após o lançamento. Dizem os injuriados assinantes, que o filme não tem pé nem cabeça (essa é a reclamação mais comum) e que a obra tem um final horroroso, que não resolve nada e deixa tudo sem resposta. Por minha vez, fiquei a pensar sobre o assunto e cheguei a conclusão de como deve ser complicado se olhar no espelho e ver onde chegamos como civilização. Pois é isso o que o filme faz, como disse certa vez Renato Russo na canção "Índios": "Nos deram um espelho e vimos um mundo doente, tentei chorar e não consegui". Enxergar a si mesmo realmente é uma tarefa para poucos. "O mundo depois de nós" nos fornece um espelho difícil de encarar, ele pede de nós uma autocrítica sobre como estamos aceitando o mundo como ele é.
Não conseguir relacionar os fatos políticos que o filme coloca é um sinal de uma perigosa cegueira, de uma forma de deseducação pelo olhar, de não conseguir mais relacionar fatos que estão presentes explicitamente em um filme. Não é uma questão aqui de aceitar as diferenças de opinião, mas sim de não ver o que está no filme. Dizer que uma sociedade competitiva ou egoísta não prejudica o coletivo é um direito de cada um e revela uma determinada visão e posição acerca do mundo que vivemos, mas dizer que o filme é confuso e sem mensagem já é assumir que não procurou ligar os fatos estão lá presentes na projeção, o de um ataque sofrido pelos Estados Unidos por outros países. E o interessante em "O mundo depois de nós" é que não há atos heroicos para manter o espectador identificado. É meio cada personagem por si, se virando como pode, conseguindo uma aliança aqui e outra acolá, além de muitos nãos.
Um dos encantos da narrativa é esconder o máximo de informações do espectador, que fica em pé de igualdade com os personagens, o que gera uma tensão, um suspense para todos. A sensação de estar desgarrado, de todos estarem sós, é fundamental para que possamos refletir o quanto estamos vivendo exatamente assim, uns distantes dos outros. Moramos tão colados de tantas pessoas e mesmo assim nos sentimos mais distantes do que nunca uns dos outros. O outro virou sempre a desconfiança a todo o instante. O filme fala disso, dos personagens e também de nós, de nosso mundo mais virtual e menos carnal, afinal, um mundo sem wi-fi é um mundo morto para nós do século XXI. Fala ainda do racismo de Amanda quando se defronta com uma situação com um homem e uma mulher negros, que eram donos da casa que alugou, os relega sem dó ao porão de sua própria casa. O que importa é o meu mundinho, e nada mais.
Talvez aqui pudesse ter falado mais do filme em si, das interpretações bem sedimentadas, com destaque para o grande trabalho de Mahershala Ali (Green Book) como um homem negro bem-sucedido no mercado financeiro, ou de várias cenas simbolicamente significativas como as dos carros zero sem controle, desgovernados pelas estradas. Mas creio que a cena mais significativa é a fatídica da filha de Amanda e Clay achando um bunker na vizinhança e ficando feliz porque poderia enfim assistir ao capítulo final de "Friends", a sua série favorita, enquanto o mundo está prestes a acabar. Essa cena, lógico, contém ironia, além de ser bastante cáustica, mas bem mostra o quanto estamos perdidos e mergulhados em um individualismo doentio. Se você não entendeu essa zoada do diretor e roteirista Sam Esmail à humanidade, você realmente não entendeu nada do que viu. Paciência...
Texto de extrema precisão
ResponderExcluirObrigado Nilda!
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