Texto de Marco Fialho
"Marinheiro das Montanhas", dirigido pelo magistral Karim Aïnouz (Madame Satã, O Céu de Suely e Abismo Prateado), é um filme de busca, de mergulho em territórios em uma viagem de interiorização de um narrador, no caso o próprio Karim. Buscar-se nas origens é a aventura proposta pelo diretor, que narra em uma voz solene os caminhos e os descaminhos de sua vida marcada pelo cruzamento de culturas díspares, a da sua mãe, uma cearense, com a do seu pai, um argelino perdido em meio a uma guerra de independência.
Esse é um filme curioso, que lembra muito alguns trabalhos de João Moreira Salles (produtor do filme), em especial a narração intimista e pessoal de "No Intenso Agora", quando João faz um relato carinhoso sobre a viagem da mãe à China na época da Revolução Cultural de Mao. Em "Marinheiro das Montanhas", Karim promove um encontro memorialístico com a mãe já morta. O tom deste documentário investigativo é poético, com o diretor indo à Argélia para tentar descobrir detalhes da vida do pai e quem sabe, conhecer a sua família paterna, já que o pai mesmo ele não conviveu.
Os momentos mais sensíveis é quando Karim fala de sua mãe e das pesquisas dela sobre as algas vermelhas, sempre evocada por uma música para lá de sensível, quase imperceptível de tão integrada ao filme, como se estivesse ali para salientar o lado intimista do filme. Mas Karim também apela para uma ópera de Bellini em cenas mais sublimes e portentosas ou para as músicas mais eletrônicas e outras mais locais pelas estradas afora, combinando com o ritmo de aventura da proposta de "Marinheiro das Montanhas".
Karim introduz na montagem instantes ruidosos de interferências de som e os mescla com imagens com cortes brutos e secos. O diretor está ciente do estranhamento de sua proposta de enfrentamento de um território que nada sabe e faz questão de sublinhar isso em seu filme. Tudo realmente nos chega em forma de espanto ou assombro pelo desconhecido, uma aventura por algo reconhecível na paisagem ou cultura, a famosa busca por um fio de identidade por aquelas ruas, que quem sabe, o seu pai também caminhou um dia. Seu pai está agora na França, mais uma vez distante e inacessível. A sensação de estrangeiro é imensa, principalmente quando lhe perguntam sistematicamente de que país ele vinha.
A narração com a voz em off do próprio Karim, se desenha como uma carta imaginária para a mãe, uma maneira de matar a saudade dela. Mas o filme é igualmente uma tentativa de reencontrar com o passado do pai, pela família perdida, pelos Aïnouz. Outro passado que emerge do filme de Karim é o da política brasileira, de sua infância em meio à ditadura militar brasileira e do processo de descolonização da Argélia, contada por personagens casuais encontrados nas ruas. Tão casual quanto a relação da sua mãe com seu pai no território neutro dos Estados Unidos, lépida, fugaz e apaixonada, que resultou na gravidez de Karim, só descoberta quando a mãe já estava de volta à Fortaleza.
"Marinheiros das Montanhas" evoca sistematicamente a memória, sobretudo a beleza inerente a ela. Inclusive, algumas imagens de arquivo de sua casa de Fortaleza aparecem e isso me fez lembrar dos fantasmas, em especial aqueles evocados por Kléber Mendonça Filho em seu recente "Retratos Fantasmas". O filme de Karim se filia e dialoga a esse tipo de documentário afetivo, que busca no invisível e nas teias da memória sua razão de ser, ou melhor, que sabe que nessas lembranças estão imersas uma verdade relativa à existência deles nesse caótico mundo.
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