Texto de Marco Fialho
"Crônica de uma relação passageira" foi uma das gratas surpresas do Festival Varilux de Cinema de 2023. O enunciado sugere algo bobo e superficial, mas na verdade, logo nos primeiros instantes vemos uma história bem narrada, com um roteiro maduro, que muito me lembrou os filmes românticos de Woody Allen dos anos 1990, em especial na maneira como os diálogos foram escritos, com muito sarcasmo, humor e um toque de ironia.
O filme narra a história de Simon (Vincent Macaigne), um homem casado que numa festa aleatória encontra Charlotte (Sandrine Kiberlain), uma mulher que propõe transar com ele sem pensar nas consequências, apenas para se aproveitar o momento, bem no estilo carpe diem de ser. A partir de então, viramos um tipo de voyeur dessa história e começamos a acompanha-la na tela. O mais interessante é que quase todas as cenas do filme se restringem aos encontros desse casal sem maiores compromissos além do carnal e da diversão, até que resolvem inserir uma terceira pessoa, Louise (Georgia Scalliet), que conhecem por meio de um aplicativo de relacionamento.
Interessante como o diretor consegue subtrair imageticamente vários personagens de sua trama, como o da esposa de Simon, o filho de Charlotte e o marido de Louise. Assim, o diretor Emmanuel Mouret consegue mergulhar a fundo nessa relação, onde não se perde tempo com personagens secundários, que estão sempre no extracampo da imagem.
"Crônica de uma relação passageira" se destaca pelo roteiro impecável pela agilidade, pelas interpretações precisas, no ponto certo do trio que carrega a história, além de ser permeado por belas canções românticas francesas. Emmanuel Mouret traça um interessante painel sobre a crise nas relações amorosas na contemporaneidade e propõe uma reflexão pra lá de pertinente sobre o desejo, o apego, as carências que sempre permeiam as relações íntimas. A câmera de Mouret passa desapercebida pela trama, fluindo e fluente, tal como a história que se desenha deliciosamente perante a nós, acompanhando os personagens com suavidade.
Se Mouret parte da ideia de que o casamento burguês é um fracasso e sempre acaba em adultério e na sua inevitável dissolução, novas formas de relacionamento precisam ser pensadas e realizadas. O foco aqui é a liberdade sexual de Charlotte (uma Sandrine Kiberlain em estado de graça, espirituosa e devidamente impulsiva), que confunde a cabeça do racional, inseguro e melancólico Simon. Vincent Macaigne talvez seja o grande ator francês do momento (quem duvida, basta assistir também "A Musa de Bonnard) e sua interpretação é o maior presente dessa "Crônica de uma relação passageira", um filme atual, reflexivo, carismático e cheio de vida.
É incrível como Emmanuel Mouret consegue prender sem cansar os espectadores durante uma hora, com Simon e Charlotte se encontrando exaustivamente na história. Se tudo caminhava para a formação de um novo casal, a surpresa se dá com a entrada de Louise na história. A paixão é sempre algo explosivo, que chega e toma de assalto os sentimentos humanos. Talvez seja isso que o diretor mais queira enfatizar, que por trás da racionalidade da vida contemporânea ainda existe espaço para o inesperado. Essa é uma crônica deliciosa e bem-humorada, às vezes cruel, aparentemente descompromissada, sobre a natureza da paixão. Woody Allen poderia ter filmado essa história, ou no mínimo, adoraria assisti-la no conforto de seu lar.
Gostei da análise, acrescento aqui um ditado baiano que aprendi com amigos:
ResponderExcluirCoração é terra de ninguém!