Pular para o conteúdo principal

O PEQUENO CORPO (2023) Dir. Laura Samani


Texto de Marco Fialho

"Pequeno Corpo" surpreende pela tenacidade da jovem Ágata (Celeste Cescutti) a enfrentar todos os demônios sociais para poder enterrar com dignidade o seu bebê que nasceu morto, e que a igreja não quer batizar porque não chegou a nascer. 

A diretora Laura Samani narra a saga de Ágata com extrema sensibilidade, enorme senso de sororidade e empatia. O filme confronta a delicadeza na abordagem da personagem com a imensa brutalidade social. É como se Samani pegasse na mão de Ágata, a conduzisse com sentimento de solidariedade a sua dor e ao próprio dogma. Se a igreja ignora friamente o dogma, Ágata não. E a insistência dela lembra a da tragédia grega de Antígona, que precisa enterrar o corpo do irmão, considerado por Creonte, rei de Tebas, um traidor. 

Ágata não aceita que seu filho seja enterrado como um indigente, sem nome como se não existisse. O filme é muito sobre esse processo de Ágata fazer o seu filho existir, não deixar que a intolerância a convença a esquecer o que carregou por nove meses. Inclusive o seu marido, o pai do bebê não quer nem saber da história e resolve continuar na vida como se nada tivesse ocorrido com a gravidez da esposa. 

Ágata vai ao inferno pelo filho e mostra como a maternidade é um dos grandes momentos da vida de uma mulher. O amor e o respeito pela vida do feto que esteve vivo durante nove meses e foi íntimo dela nesse tempo. Ao descobrir que existia uma rezadeira capaz de fazer o feto dar um suspiro de vida, Ágata vai atrás dela e enfrenta a mentira, a ganância, o roubo, desabamentos, montanhas e o escambau para poder dar um nome à filha já morta. 

É comovente como Laura Samani conduz a história, e mais comovente ainda como a entrega da atriz Celeste Cescutti como Ágata. No meio do caminho ela encontra a deserdada Lynx (Ondina Quadri), que se passa por homem depois de ser expulsa de casa pela família. O que "Pequeno Corpo" retrata são caminhadas de autodescobertas dessas duas personagens fortes, que não se dobram à rigidez de um mundo cruel e duro de viver. 

Durante todo o processo de luta de Ágata, ficamos nos perguntando se valeu a pena os esforços desmedidos da personagem. A resposta é difícil de formular, pois são muitas as questões envolvidas nesse árduo processo de luta. A persistência, a fé, a crença, a dor, a superação estão sempre sendo postas à prova durante a nossa vida, mas como continuar a caminhar com dignidade quando nos cobram correção enquanto na prática ela é tão negligenciada?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...