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LEME DO DESTINO (2023) Dir. Julio Bressane


Texto de Marco Fialho

Julio Bressane é um dos cineastas brasileiros de maior inventividade hoje no Brasil, e como impressiona a sua capacidade de se reinventar. "Leme do Destino", filme mais recente do diretor é mais uma aula de como fazer cinema com baixo orçamento e mantendo um enorme controle artístico. O filme é mais um primor do diretor, um elixir para os olhos e os sentidos dos espectadores.        

O filme começa com uma longa conversa entre duas mulheres sobre sexo, casamento, fidelidade, relacionamento, entre outros assuntos, regados a doses de cachaça. As mulheres são interpretadas por Simone Spoladore (uma escritora) e Josie Antello. O magnetismo delas em cena é surpreendente, ambas, não só estão soberbas em seus papéis como se deixam conduzir pelo olhar afiado de Bressane. A presença da bebida em cena permite um trabalho de liberação dos corpos, uma espontaneidade estupenda e uma química maravilhosa. 

Em "Leme do Destino", Bressane vai da teoria à prática em uma proposta narrativa cuidadosa e repleta de beleza, que reflete poderosamente sobre o amor e o sexo entre duas pessoas. Poucas vezes assisti a um filme que consegue representa-los de maneira tão contundente, com imagens surpreendentes e inovadoras, uma teatralidade muito bem engendrada e escamoteada por uma visão cinematográfica polida.   

Um dos indicativos que mais apontam a criatividade inerente a "Leme do Destino" está na capacidade de Bressane construir a espacialidade pelo som e pelo simbolismo de alguns elementos cênicos, como barcos em miniatura navegando pela cama das duas personagens enamoradas. Bressane arquiteta uma sensorialidade sofisticada no desenvolvimento das cenas. Um dos pontos altos do filme é a mise-en-scène elaboradíssima executada pela direção. Os movimentos de câmera são de um refinamento poucas vezes visto no cinema brasileiro. Os planos inventivos e vertiginosos de Bressane realmente transformam a casa e a cama em pleno mar. Os balanços do mar são recriados pela câmera, em um ato poético desconcertante. 

"Leme do Destino" é cinema em estado puro, mas jamais bruto, muito pelo contrário, é uma joia lapidada pela inteligência de um diretor consciente do que está executando. O som do filme é uma delícia de se ver. Sim, de ver e sentir, e não só de ouvir. O som do mar e do vento simulam o ambiente externo do apartamento, assim como o movimento de gangorra do sexo e a instabilidade do amor. Assim como a música da Rita Lee e do Arnaldo Jabour, amor e sexo não se completam e sim se opõem. A personagem de Simone Spoladore descobre essa dura realidade, a da incongruência entre esses dois mistérios da vida.

O grau de representação da imagem e do som em "Leme do Destino" é de uma felicidade incomum. São muitas cenas primorosas onde somos agraciados pela combinação do simbolismo e da sensorialidade. Ora são cabelos se espalhando na tela, nos engolindo com seus volumes e cores, ora os orgasmos são substituídos por uma performance tanto corporal quanto sonora, reforçados por uma fotografia avermelhada para lá de sensual. A poética é latente em muitos outros momentos no filme, como na cena em que Bressane brinca com a ideia de folhas voando pela casa, tanto as de árvore quanto as de folhas escritas. 

Visualmente, há muitas cenas oníricas, repletas de ironia, como a que vemos bananas, fitas, cordas e sapatos flutuando pelos rostos, corpos e reentrâncias das personagens, em mais um eloquente toque de sensualidade. Bressane mantem uma atmosfera de transe sensacional, de corpos em festa, silhuetas sexys e espasmódicos gozos. Uma câmera baixa simula o movimento ondas, como se as duas personagens estivessem em alto-mar. O sexo em sua mais alta entrega primitiva, mas tudo dentro de uma teatralidade nada literal. Uma beleza. Aí vem uma das cena mais bonitas e poéticas: a de um longo pedaço de papel higiênico queimando lentamente, em plano detalhe, até restar somente a última cinza. Não lembro de ter visto uma representação do fim de um caso amoroso tão fantástica quanto esta.    

Porém, Bressane não para por aí. Outras surpresas ainda seria reservada para os espectadores. A personagem de Simone Spoladore arruma um namorado jovem, que trabalha em um botequim daqueles bem rústicos. Em um determinado momento eles vão para o apartamento e Bressane realiza um longo plano sequência filmada no reflexo do espelho, com eles dançando apenas ao som do barulho das ondas, parecendo que o casal balançasse no ritmo delas. As cenas do novo casal são visivelmente mais plácidas, sugerindo um encontro mais amoroso do que sexual, bem diferente da relação anterior estabelecida com a outra mulher. 

Mais uma vez Bressane filma uma obra especial, com grande requinte narrativo e visual, este último amparado pela bela e expressiva fotografia de Pablo Baião. Lá pelo final do filme, uma senhora, ao narrar as suas experiências de vida proferiu as seguintes sábias palavras: "vivemos várias vidas nessa vida". Essa frase ficou martelando em mim por algum tempo e fiquei a pensar o quanto ela sintetiza tão bem mais esse filme transcendental do mestre Julio Bressane. Sim, a vida é muito mais múltipla e diversa do que supomos, às vezes, acreditar.    

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