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HERE (2023) Dir. Bas Devos


Texto de Marco Fialho

Em determinado momento enquanto assistia "Here", me dei conta que estava leve. Mas depois passados mais alguns minutos, me dei conta de que "Here" estava em mim, e essa sensação me deu uma paz, me fez paz. Confesso que há muito um filme não me provocava isso, essa mágica inspiradora. "Here" nos convida a um encontro com algo que está perdido ou que se perdeu na vida contemporânea. E não o faz com um discurso direto, mas pela poesia emanada pela proposta especialmente imagética, e sonoramente com poucos sons, talvez para ouvirmos mais a natureza, o vento nas árvores a chacoalhar as folhas. E tudo com paciência pachorrenta ditando o ritmo.  Ritmo... Sim, "Here" me lembra o que certas músicas de Bill Evans provocam em mim, uma sensação de bem-estar, de um som capaz de completar algo dentro de mim, de conectar processos harmônicos no corpo. Inspiram conexões orgânicas.

"Here", dirigido por Bas Devos, é aquela obra que vai nos transformando, mas nada abruptamente, ela vem suave até se instalar na gente. Essa operação talvez não aconteça em todos, lógico, ainda mais que esse é um atributo raro de se sentir, a alma precisa estar ali disponível, entregue, com o desejo de ser tomada. "Here" fala de encontros em um mundo onde os desencontros viraram uma vulgaridade no cotidiano.  

Vou tentar, humildemente, me esforçar em racionalizar ao máximo o processo que esse filme desenvolveu em mim. Acho que talvez "Here" tenha me feito compreender melhor os efeitos que o cinema pode causar nos espectadores, o fenômeno da receptividade que tanto já foi pensado e dito por teóricos do cinema, as implicações perceptivas que um filme pode causar na psiquê humana, os tais efeitos ilusórios de 24 frames por segundo passando ininterruptamente pelos nossos olhos, esse jogo imaginário por qual o cinema transita em cada um de nós. 

"Here" não se assenta em uma história clássica, acontece por flagrar alguns momentos da vida de Stefan (Stefan Gota), um imigrante romeno que trabalha na construção civil. E em paralelo, acompanhamos ainda também alguns breves momentos da personagem Shuxiu (Liyo Gong), uma estudiosa da briologia, em especial da vida dos musgos. A mágica desse filme está na sutileza de como o diretor Bas Devos conecta esses dois personagens. Mas antes de chegar nesse encontro, o diretor nos apresenta seus cotidianos e ações que ambos tomam perante a vida, com uma sensibilidade fora do comum, extraindo poesia da vida cotidiana. O encontro de Stefan e Shuxiu é também o encontro improvável de duas culturas diversas (a célebre dicotomia Oriente/Ocidente), e porque não, da própria humanidade em sua disparidade.   

O que encanta em "Here" é a maneira como o diretor Bas Devos instaura o espírito contemplativo em meio a uma grande cidade como Bruxelas. Se pensarmos na primeira cena, com imagens de um prédio em construção, vizinho a outros já construídos, vem logo uma ideia de que veremos a aridez de uma cidade urbana em constante crescimento. Entretanto, logo veremos Stefan de férias, e Shuxiu trabalhando com seus musgos, ambos nos revelando que sob esses mundos aparentemente pequenos, existem universos belos, como uma floresta em miniatura ou uma mera sopa de legumes. Enquanto Stefan se prepara para voltar para Romênia, sua terra natal, vemos ele vagarosamente catando os legumes da geladeira para fazer essa sopa. Essas são as duas situações paralelas que nos aprisionam a esses personagens, cada um com a sua vida, imersos tanto na solidão quanto no amor pela vida. 

Stefan tem o carro que precisa preparar para a viagem de volta à casa e precisa levá-lo para uma mecânica. Shuxiu visita a tia, dona de um restaurante chinês, na qual Stefan também às vezes vai comer algo. São temporalidades que o filme trabalha, enquanto mostra em pequenas ações o quanto o mundo contemporâneo aprisionou a vida das pessoas em torno de si mesmas em seus apartamentos, segregados dos encontros e da sociabilidade. A vida silvestre, entretanto, está próxima, em um parque sitiado no coração da cidade, e será nele, nesse vestígio de natureza pulsante, onde o encontro transformador entre os personagens ocorrerá, com Stefan tendo que atravessa-lo para poder pegar o carro na oficina. 

O encontro na parque revela para Stefan um mundo maior, escondido em meio à densa vegetação do parque. É impactante para Stefan, e para nós espectadores, a descoberta de uma floresta dentro de outra, do mundo fantástico que desconhecemos porque não o vimos com a devida atenção. Parar, observar pela lente de aumento o bioma de um musgo é descobrir uma forma de beleza que o concreto do dia-a-dia nos esconde. É um choque saber que esses seres tão pequenos são as plantas mais antigas da Terra e que a sua permanência se dá em qualquer lugar, até nos áridos vão dos concretos. "Here" parte da ideia de que a beleza está presente no mundo e nas pessoas. É linda a cena em que Stefan tem um raro encontro com a irmã e ele apenas diz para ela: "fale", pelo simples motivo de que queria ouvir a voz dela, para levar consigo a sua voz para a Romênia.

O que falar dos planos de "Here", da sua cuidadosa decupagem, onde closes intimistas contrastam com planos gerais e nesse choque entre os rostos e o mundo revela-se tanta beleza? A câmera aponta para cima, para os prédios altos com a mesma facilidade que mostra um mundo microscópico em seu inesperado encanto. "Here" traz em si uma aventura fantástica, assim como um convite à observação do mundo, desviar o olhar para coisas que apesar de próximas não estamos vendo. Assim, Stefan ao andar na rua à noite entra no mato para pegar um vaga-lume, e a cor verde mais uma vez enche a tela com vivacidade. É a esperança nos fazendo sorrir pelo cinema. 

Inclusive, "Here" é uma invasão sensitiva do verde em nossos olhos. Quando menos esperamos, estamos tomados por esse filme, que inicialmente parece não querer ir longe, mas de repente nos invade a epiderme e nos toma, como um ser alienígena a abduzir nossos corpos. Cinema pode ser muita coisa e expressar muitas coisas e pode realizar muita coisa. O que eu posso dizer é que "Here" se alojou em mim. Pensar nele é um exercício na crença de que valorosas emoções estão guardadas nas pequenas coisas da vida, nas ações mínimas, como dividir uma sopa com amigos trazer algo de potente e encorajador para o nosso viver. 

Com certeza, a maioria de nós vive numa cidade grande e "Here" toca fundo nesse viver desesperado e volátil presente no mundo urbano das grandes cidades. Quando um entregador de aplicativo entra no restaurante da tia de Shuxiu, em meio a uma chuva forte para pegar uma comida, Stefan e Shuxiu se entreolham e comentam sobre o sacrifício de uns para que outros possam comer sem se molhar. E quando Stefan diz que passa o tempo livre caminhando sem propósito e que ele observou que as pessoas estão a sós pelo mundo, isso nos leva à reflexão sobre como vivemos e encaramos nossa vida, o quanto o sentido de coletividade foi arrefecendo na medida que as cidades foram crescendo. 

"Here", em suas cenas, inspira variadas formas de amor, e mostra como o amor está presente no ato de contemplação, no agora e aqui, no tempo gasto conosco e com os outros. Por isso, esse é um pequeno filme grande, o que me faz, por sua vez, lembrar de uma frase-pensamento de Jean-Luc Godard: "o cinema nasce de pequenos filmes". Bas Devos aprendeu essa lição, não sei se foi com o mestre francês, mas "Here" demonstra que ele aprendeu, e muito, sobre como retratar a essência do amor, que pode está encoberto por uma pequena vegetação de musgo. É o cinema como esperança e como possibilidade de dias melhores.   

Comentários

  1. Quero assistir. Está em exibição em qual cinema no Rio de Janeiro?

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    Respostas
    1. No momento só em São Paulo, Aracajú e Goiânia. Mas deve entrar na quinta (09/05) no Rio.

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