Texto de Marco Fialho
"O navio no porto é seguro, mas não é por isso que eles são construídos"
"Fremont", apesar do título se reportar a uma cidade do Estado da Califórnia, é um filme de personagem, mais exatamente sobre Donya (Anaita Wali Zada), uma jovem e tímida afegã que apesar de ser tradutora, trabalha em uma fábrica que fornece biscoitos da sorte para os restaurantes chineses, cujo dono é um simpático chinês de meia idade, que acredita no seu talento, quando a senhora que fazia o serviço morre exercendo o trabalho.
Tudo é por demais encantador em "Fremont", a começar por Donya, uma jovem cujo charme vem de uma postura discreta e misteriosa em relação à vida. O diretor iraniano Babak Jalali consegue deixar em todas as cenas sempre um algo para o espectador indagar ou completar e como isso é sedutor. A aparente simplicidade da encenação guarda uma riqueza e uma sutileza nas relações que os personagens estabelecem entre si. Um caso típico de um roteiro impecável (dividido entre o diretor e Carolina Cavalli), econômico, enxuto, mas deixando espaço para a direção ditar o seu ritmo, que Babak imprime com precisão, sem nenhum excesso e falta.
"Fremont" é um filme cheio de pausas e silêncios significativos e expressivos, não há grandes arroubos emocionais, a contenção de gestos e de intenções inundam a tela com um preto e branco singelo ao retratar uma vida sem grandes cores disponíveis para Donya. O filme capta um ser que se sente deslocado no mundo, uma autêntica estrangeira, e não só porque ela está em outro país, mas sobretudo por sua alma estar meio a vagar, em busca de algo que ela não sabe ainda nomear muito bem. A solidão é um dos temas do filme, essa necessidade de encontrar alguém com quem se possa dividir pequenas alegrias e as angústias.
A sensibilidade da direção aparece a todo instante em "Fremont", uma grata surpresa que mesmo que não seja tão comentada na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, lançou uma luz para os que se arriscaram nessa escolha. O mais incrível é que apesar de esbanjar sensibilidade, o filme de Babak Jalali não apela para o choro ou o riso fáceis, pois tudo é tão milimetricamente dosado, há o cômico e o dramático muito presentes, mas sempre mediados pela incompletude das ações e emoções, de maneira que a existência deles é parcial e prestes a ser completada pela nossa experiência sensível. "Fremont" é um convite permanente a nossa percepção, à intervenção dela.
Donya sofre de insônia e precisa se consultar com um psiquiatra para administrar remédios, e o roteiro se aproveita bem dessas situações para que saibamos melhor sobre o passado da personagem. E os silêncios são mesclados com as respostas diretas dela, o que funciona extraordinariamente para o filme. Tem uma hora em que ela diz que está na América, mas podia estar na Alemanha, França, Inglaterra ou El Salvador, que seu intuito era só sair do Afeganistão. Esses pequenos diálogos sempre expandem o filme, jamais fecham os caminhos para Donya ou a impedem de perguntar sobre a sua existência no mundo.
Os maiores diálogos de Donya são com o seu psiquiatra (o ótimo Gregg Turkington), um homem provocador, que força ela a se repensar e lança vários simbolismo e metáforas com a leitura do livro "Caninos Brancos" como um guia de reflexão da vida dela. O que dizer das frases que ele faz para os biscoitos da sorte? O que é capaz um homem inebriado pela sedução? Curioso como ela, mesmo sem querer, seduz os seus interlocutores, com simplicidade e espontaneidade, seja no trabalho, no condomínio ou em uma oficina mecânica. Há uma discussão permanente de como devemos agir no mundo, qual o impacto podemos receber e ofertar aos outros. Quando Donya encontra casualmente o mecânico, é a simplicidade que dá o tom, a vida fica fácil e isso se evidencia quando ele aceita o patético cervo e diz que precisava de um. É o amor posto de maneira singela, em pequenas ações que a vida oferece.
Em seu condomínio de apartamentos, Donya lida com diversos afegãos desde um sensível vizinho Salim até o misógino Suleiman, que a ignora e maltrata a esposa, fora o estranho e conselheiro dono do restaurante onde ela janta todos os dias. O mesmo ocorre no trabalho, mediado por uma câmera muito objetiva nas cenas, em especial em algumas tomadas, como na cena da morte da senhora criadora de frases do biscoito, onde em segundos já vemos Donya assumindo o posto como a nova escritora. É muito interessante como o diretor Babak lida com a parte musical (belíssima inclusive), sempre como pontuação das transições das cenas, nunca dentro das cenas em si, para a nossa sorte e para o bem do filme.
Ao escolhê-la como redatora, o seu chefe lhe diz: "a pessoa que fica como redator de mensagens nos biscoitos da sorte é quem sabe falar de amor e quem melhor sabe falar de amor, é quem ama a si mesmo. Você ama a si mesmo?" Creio que o melhor complemento dessa cena é a sequência de anônimos abrindo o biscoito da sorte e lendo as mensagens. Toda a parte do treinamento que o chefe faz com ela é maravilhoso, o carinho e a delicadeza nas qual ele a aborda. O filme trabalha sempre com essa perspectiva de como podemos inferir na vida alheia mesmo sem se conhecer essas pessoas. Do quanto podemos tocar diretamente na vida das pessoas com o nosso trabalho. Isso é rico demais, uma joia que "Fremont" nos traz, a beleza do acalanto do invisível. Impressionante como Babak, a cada nova cena, quer revelar os sentimentos profundos de Donya.
O que Babak Jalali propõe é um cinema com um imenso lastro existencial, um cinema reflexivo, em que a maioria dos pensamentos vem da sua impecável direção de atores e mise-en-scène, que faz com que cada personagem consiga emergir a sua alma. Esse é um tipo de cinema que precisamos, humanista, que divide os sentimentos da protagonista conosco, que a explora com doçura, pois precisamos dessa amabilidade para sobrevivermos a um mundo impessoal, acinzentado pela dureza da selva de pedra que a contemporaneidade construiu para si.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!