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20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS (2023) Dir. Estibaliz Urresola Solaguren


Texto de Marco Fialho

Desde que a discussão sobre gênero tomou grandes proporções e ataques pela extrema direita no Brasil, o tema ganhou maior atenção e cuidado. "20.000 Espécies de Abelhas" contribui e muito para esta conversa que precisamos ter sobre gênero no Brasil e no mundo. 

O filme, dirigido por Estibaliz U. Solaguren, retrata dias fundamentais de Lucia, uma menina de 8 anos que nasceu em um corpo masculino e enfrentará a tudo e a todos para reafirmar este fato. Em um momento do filme, Lucia pergunta se teria algum jeito dela morrer e renascer novamente como menina. Essa pergunta é fundamental por tornar irrevogável os sentimentos de Lucia. Nada a fará voltar nesse sentido e quando ela coloca isso frontalmente, estamos a discutir o amor próprio e o direito de cada um se ver como o seu coração é, e não como outros o queiram determinar.

Um dos pontos mais nevrálgicos de "20.000 Espécies de Abelhas" é o da aceitação social, isto é, o que as pessoas de seu convívio acharão se uma pessoa que nasceu com o sexo masculino quiser colocar um vestido, pintar as unhas ou usar cabelo comprido? Não casualmente, será numa festa de batizado que o gênero Aitor/Lucia virará uma questão. Ir de vestido causará um mal-estar no coletivo? O que seria de foro íntimo torna-se algo pertencente a um grupo, e é justamente o indivíduo o mais penalizado e reprimido. Com a chegada do pai é deflagrada a discussão com a mãe sobre erros de educação, o lugar mais comum de todos. 

"20.000 Espécies de Abelhas" tem um roteiro que toca o dedo no ponto exato da ferida social, o do momento em que a pessoa percebe em qual gênero ela sente pertencimento e plenitude. É muito importante se jogar luz sobre a discussão em nossa sociedade tão conservadora sobre o ser feminino e masculino, o que representa cada um dos gêneros ou até mesmo a ausência deles. Me lembrou o estardalhaço de quando o compositor Gilberto Gil lançou, no final dos anos 1970, a música "Super-Homem, a canção", em que questionou a masculinidade tóxica e o quanto carregamos em nós tanto o feminino quanto o masculino. No filme, quando Lucia pergunta ao velho Esteban pelas sereias, a vó retruca, mas ele afirma que "as sereias pertencem à imaginação. A fantasia também pertence à realidade", e logo a seguir vem uma segunda dúvida sobre o significado da palavra fé, e o mesmo ancião responde a ela: "a fé é acreditar em algo que tem aqui dentro do coração... uma crença é aquilo que você acredita plenamente". Cenas como esta, aparentemente aleatórias, poderiam estar mais presentes e dariam uma amplidão maior à discussão que o filme traz.    

Mas há algo em "20.000 Espécies de Abelhas" que gera uma sensação de que o filme poderia ir mais longe. Será que a escolha de uma menina para o papel de Lucia retirou alguma dose mais forte que a história poderia dar? Por que não foi escolhido um menino na mesma posição de Aitor, que pudesse passar um maior envolvimento com o tema? Em algumas cenas, senti que a atriz Sofía Otero não consegue atingir a plenitude espiritual da personagem, não alcança uma dor verdadeira de todos a verem como menino enquanto o seu sentimento é feminino. Tem momentos em que Sofía Otero parece flutuar por cima desses sentimentos enquanto deveria senti-los no fundo da alma. A impressão é de que nas cenas mais objetivas ela consegue dar conta, porém, nas mais intimistas, ela não atinge emocionalmente o máximo.            

Ainda que "20.000 Espécies de Abelhas" se perca em alguns momentos, por se dividir muito entre a história da mãe e da filha, o que faz dispersar um pouco a atenção do principal e alongar o filme por demais, não tem como deixar de ressaltar os momentos encantadores com Lucia que a diretora imprime em diversos momentos, normalmente os mais banais, seja com a tia-avó, no rio ou com as abelhas. Os maiores acertos se dão quando a câmera de Estibaliz se põe a serviço dos olhos de Lucia, para restabelecer a beleza que às vezes insiste em tentar se esquivar. A ideia de que podemos ser o que somos é o maior trunfo do filme e que cabe aos outros apenas aceitar. Quando Lucia está perdida, como a chamar, como Aitor ou como Lucia? Essa é a questão maior que o filme traz: a de que merecemos ser o que somos. Dito assim, parece ser uma tarefa simples, mais socialmente sabemos que não é.

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