Pular para o conteúdo principal

ZÉ (2022) Dir. Rafael Conde


Tema de ontem, tragédias de hoje

Texto de Marco Fialho

O filme "Zé", dirigido por Rafael Conde (diretor homenageado desta edição) abriu a 17° Mostra CineBH 2023 e arrancou muitos aplausos da plateia presente no Cine Theatro Brasil Vallourec. A trama transcorre em plena ditadura militar e narra a história do militante político José Novaes Mata Machado, filiado à Ação Popular, em um contexto de severa perseguição militar. 

Creio que a maior ambição do diretor foi a de reconstruir por dentro o clima de angústia de quem militava clandestinamente contra o sistema vigente, numa época em que as ameaças à integridade física de opositores políticos estava profundamente ameaçada pelo regime ditatorial. Mas assistir a "Zé" logo após o governo autoritário do ex-presidente Jair Bolsonaro também faz diferença. Como não relacionar esses dois momentos que foram os mais pavorosos de nossa história política? 


As opções narrativas de Conde também reforçam o clima pesado do filme. Enquadramentos fixos e planos próximos ampliam a sensação de aprisionamento e encurralamento dos personagens (em especial Zé, interpretado por Caio Horowicz; Madalena, vivida por Eduarda Fernandes; e Samantha Jones, como Grauninha). Apenas senti falta de personagens mais velhos como militantes políticos ligados à resistência à ditadura militar, o que era muito comum. Mas vale ressaltar a qualidade interpretativa dos atores em cena, todos muito jovens, talentosos e bem dirigidos. O roteiro também não pretende se aprofundar nos debates políticos-ideológicos que haviam no âmbito da esquerda. 

Um dos pontos que mais me chamou a atenção foi o desenho de som magistral de Pedro Durães. É impactante como por meio do som nossos sentidos ficam completamente atordoados. Chega a ser massacrante ouvir a concepção sonora de "Zé". Assim, Rafael Conde consegue tanto na imagem quanto no som, criar uma atmosfera impactante, opressiva e imersiva para o seu filme, daí o predomínio da abordagem psicológica sobre as discussões mais ideológicas.    


Mesmo que admitamos que vários filmes sobre a ditadura, e mais especificamente sobre o AI-5 (Ato Institucional n°5), já foram filmados (e seria exaustivo reproduzir o tanto de filmes aqui), mostrando os crimes absurdos cometidos pelos militares, a realidade recente de nossa história política nos leva a crer que nunca é o bastante retornar ao tema. "Zé" sublinha muito o pânico que era viver numa sociedade persecutória, em que o direito ao contraditório não só inexistia como era punido com a prisão, tortura e quiçá a morte. Depois de um governo de caráter fascista que tivemos no Brasil, com casos de perseguição à professores (chamados de comunistas) nas escolas públicas, ao movimento LGBT, às populações pretas e indígenas ("não haverá uma demarcação de terras indígenas", lembram disso?), o diretor Rafael Conde fez questão de trabalhar em "Zé" o clima coercitivo de um país dominado por militares golpistas (basta lembrar da sombra que pairou no 8 de janeiro deste ano de 2023, com o atentado à democracia, inclusive com a depredação de bens públicos e o pedido de fim de instituições como o STF).   

Infelizmente, o filme de Rafael Conde nos lembra que fomos um país repletos de Zés, e ainda podemos dizer que o somos, basta lembrar o quanto a política de segurança pública de grandes cidades brasileiras alimentam o genocídio como prática. Um caso exemplar do que estamos a falar é o do Rio de Janeiro, em especial no que tange ao extermínio do povo negro e pobre. Quem pesquisar a história do esquadrão da morte vai entender porque estou relacionando ditadura militar e política pública de segurança no mundo de hoje. "Zé", indiretamente está a tocar nesses temas e nos alertar sobre o perigo dos processos ditatoriais e repressivos que nunca deixaram de estar presentes na vida social e política desse país continental. 

Comentários

  1. Valeu pelas observações! Quanto ao casamento, tanto Zé quanto a Ação Popular, são desdobramentos da JUC - Juventude Católica. O casamento De fato aconteceu - e na vida real foi rezada por um ex-padre que se juntou ao movimento.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...