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O ESTRANHO (2023) Dir. Flora Dias e Juruna Mallon


A vida imersa nos subterrâneos de Guarulhos

Texto de Marco Fialho

O mínimo que se pode dizer de "O estranho", filme dirigido por Flora Dias e Juruna Mallon é o tanto de surpresas que transborda dele. Tudo aqui é inesperado e incomum, desde a história até a narrativa que a cada momento parece que vai para um lado, o que torna o todo bastante desorientador. O filme, foi exibido na mostra Fórum, no Festival de Berlim. 

Logo nos primeiros planos aparecem imagens de um pedaço de montanha, pedras e limos. A câmera passeia em planos próximos até que há um corte para o inusitado: começamos a ver imagens em flashes, cada uma delas com uma data diferente. Assim, de repente a temporalidade se expande em datas desconexas: 1590, 1932, 1893, 1677, 1492. Apenas um elo entre tudo, o do espaço, o do território. Todas as imagens remetem a Guarulhos, o aeroporto. 

O mais interessante é como Flora e Juruna constroem uma narrativa nada fluida, que vagueia ora pela ficção, ora pelo documentário, ora pelo experimental. Esse hibridismo lança ao público constantes desafios no âmbito da linguagem, pois aos poucos somos enredados pela dúvida, pois dados históricos aparecem com força, assim como definições arqueológicas irrompem da tela. Enquanto aguardamos a chegada do tal estranho do título vamos juntos tentando amarrar a história pessoal da protagonista Alê, inclusive uma relação amorosa, que se mistura com o território do próprio aeroporto. Ela procura tesouros em malas (pedras e resquícios da natureza, como flores e folhas, usados como marcadores de livro) e caminha pela floresta no entorno de Guarulhos, entre memórias familiares e os sambaquis que revelam segredos de épocas muito distantes no tempo.  

Podemos dizer que em "O Estranho", as temporalidades são talvez as maiores protagonistas do filme, pois nelas assentam a construção narrativa. Pensamos o quanto que independente da força do poder econômico, que vem e destrói coisas belas, a ancestralidade possui um lastro no tempo, se afirma nele, e está preso a ele como uma rocha ao solo. Os diretores realizam isso, um plano imagético das temporalidades em um espaço onde hoje circulam milhares de pessoas, que vem e vão sem sequer intuir as histórias que aquele chão carrega. 

O maior baque que sentimos ao ver "O Estranho" é quando a ficha cai que o tal estranho tão esperado é o próprio aeroporto, inaugurado em 1985 e fruto de um processo de desalojamento de um grande contingente populacional. O presente pode se impor pelos interesses econômicos, mas a história está viva ali e as comunidades indígenas ainda vivem naquele território, e mesmo exprimida, resiste com várias etnias. 

De repente, o documentário invade a tela e passamos a conhecer representantes dessas etnias, seus cultos, assim como o terreiro de candomblé que ainda teima pelo território. Em meio ao mundo tecnológico do aeroporto, entre subidas e descidas de aviões existe uma vida ancestral riquíssima, e o mais intrigante desse filme é o quanto as histórias vão brotando de todos lados, como se o filme fosse um mar que a princípio é visto de cima e apenas se revela quando mergulhamos no seu mundo subaquático, para repararmos o quanto de vida ainda subsiste por ali. Um dos momentos mais surpreendente do filme é quando vemos os "sambaquis" irromper na pista de pouso do aeroporto, como um vulcão dizendo o quanto de vida e história aquele espaço tem. 

O filme vai amarrando a história da família de Alê aquele território, sendo ela trabalhadora do próprio aeroporto. Esse é um filme que precisa ser visto como um profundo estudo arqueológico do território de Guarulhos, ao buscar os elementos vivos de uma história sempre propensa a ser apagada pela ideia de progresso. O rio está ainda ali, as nações indígenas, quilombolas também. A floresta ainda guarda as grutas feitas no tempo da exploração das riquezas minerais. São os povos indígenas resistindo aos constantes apagamentos em mais de 500 anos.

Insistir em viver ali é resistir, e gosto muito de quando a produção realiza a gravação mesmo com os aviões subindo e descendo. Ao mostrar essas imagens da espera do avião passar, a direção do filme cria uma dimensão simbólica extraordinária, de que o aeroporto existe há quarenta anos, enquanto antes dele já pulsava uma cultura ancestral. O filme registra e documenta isso. Se a história da ficção consegue se sobrepor a isso são outros quinhentos. Talvez haja sim uma certa fragilidade no risco dessa narrativa em amarrar tudo isso, uma ambição difícil de dar conta do documental, do experimental e do ficcional. Mas tudo soa com tanto frescor, como descoberta e com imagens tão belas, que compensa por demais os riscos presentes na proposta. Prefiro ficar com a voz over de Alê a proferir: "O rio falou comigo, ele conhece o destino". "O Estranho" nos revela a vida subterrânea do Aeroporto de Guarulhos, e isso não tem preço.

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