Do esquadrão às milícias: o desnudar de um poder mesquinho e violento
Texto de Marco Fialho
Héctor Babenco foi um dos cineastas que mais se esforçou em realizar um cinema com um bom acabamento visual e que ao mesmo tempo dialogasse com um público mais amplo. Em vários de seus projetos ele foi bem sucedido nessa empreitada, podemos lembrar de "Carandiru" (2003), "O beijo da mulher aranha" (1984), "Pixote, a lei do mais fraco" (1980) e "Lúcio Flávio, o passageiro da agonia", uma adaptação interessante do livro de José Louzeiro, que também colabora com o roteiro, que ainda contou com a participação do chileno Jorge Durán e de Babenco (curiosamente, dois estrangeiros), um filme construído com todos os elementos clássicos de um filme policial, onde o bandido está em fuga.
A trama é simples, acompanha os momentos finais da vida bandida de Lúcio Flávio, um fora da lei à brasileira, embora fosse um homem branco de olhos verdes e cabelo quase comprido. Babenco aproveita essa história banal, de assaltos a bancos para revirar a história do esquadrão da morte, grupo advindo do núcleo duro da polícia e embrião das milícias cariocas. Vale lembrar que a história do filme se passa no contexto político da ditadura militar brasileira (1964-1985), numa época difícil, de repressão e que não se podia falar das coisas muito às claras e Babenco sabe contornar isso privilegiando o olhar de Lúcio Flávio sobre a sua própria vida e dificuldades de lidar com um grupo corrupto da polícia.
O filme tem muitos momentos de tensão, assassinatos, perseguição, discussões sobre quem deveria comandar as ações criminosas. Apesar de conter vários personagens, Babenco consegue realizar um filme descomplicado, de fácil entendimento e que prende a atenção dos espectadores. O Rio de Janeiro torna-se personagem do filme, com várias paisagens da cidade aparecendo na história. Em diversas cenas, regiões mais periféricas estão presentes, com suas habitações simples e com populares participando das filmagens.
O elenco de "Lúcio Flávio, o passageiro da agonia" é repleto de grandes nomes do nosso cinema, como o próprio Reginaldo Farias como protagonista, mas atores como Milton Gonçalves, Paulo Cesar Pereio, Grande Otelo, Ana Maria Magalhães, Ivan Cândido, Lady Francisco, Stepan Nercessian e José Dumont. Babenco demonstra um grande talento para dirigir atores, mesmo estando ainda em seu segundo longa. O roteiro trabalha muito bem os conflitos entre personagens marginalizados em sua tênue relação com a polícia corrupta, que cria grupos de extermínio paralelos à força oficial. Os planos valorizam a ação, abrindo caminho para uma narração fluida e cativante. Apesar de Lúcio Flávio ser tratado como um bandido pela direção do filme, não dá para negar que há uma tendência a tornar esse um personagem determinado, sedutor e carismático.
Lúcio Flávio é retratado como um cão que passo a passo vai sendo encurralado, conforme se torna um joguete na mão dos poderosos. Se Bechara (Ivan Cândido) e Moretti (P. C. Pereio) se vislumbram como os vilões da história, não temos acesso aos peixes maiores, os graúdos que realmente manipulavam as peças para extrair vantagem. Interessante como vários roubos de banco são noticiados como um crime da gangue de Lúcio Flávio, quando ele não comandou tantos assaltos quanto noticiados, o que leva a crer que muitos ganhavam enquanto a fama era transferida injustamente para Lúcio Flávio. O filme aborda um mundo em que a grana corre solta, mas que nunca vai parar mesmo na mão do suposto bandido.
Desde a cena inicial, o desfecho já parece anunciado. O desejo de se dar bem pelo meio do crime fatalmente não poderia lograr, afinal essa é a regra máxima da nossa sociedade, ladrão pobre vai acabar na horizontal, isso não tem mesmo jeito. Um dos trunfos de Babenco é saber lançar mão da sujeira sem precisar jogá-la no ventilador, e assim, espantar o sistema político opressor. "Lúcio Flávio, o passageiro da agonia" tem um clima saudosista, conferida por uma imagem cuja textura da película soa como algo pertencente a um passado já extinto em várias dimensões (temporais, de costumes, roupas, lugares, etc.).
Portanto, o sabor que emana de "Lúcio Flávio, o passageiro da agonia" no chega meio amargo à boca. Ele causa uma dupla sensação contraditória, primeiro por remeter a um tempo cinematográfico em que filmes brasileiros lotavam as salas de cinema, mas por outro lado, nos faz lembrar do presente, em especial da relação entre esquadrão da morte e as milícias da Era Bolsonaro. Sim, já existem diversos estudos que mostram o desdobramento de um em outro. O Brasil nunca foi para amadores e o filme não nos deixa esquecer disso, do quanto fomos, e somos ainda, um país delineado para os poderosos, por mais que no cotidiano criemos perspectivas ilusórias de enriquecimento e sucesso. O mais surpreendente é constatarmos tudo isso com um cineasta nascido na Argentina, mesmo sabedores do quanto ele se sentia afinado com as agruras e mazelas do nosso país.
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