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ESTRANHA FORMA DE VIDA (2023) Dir. Pedro Almodóvar


Um Almodóvar literalmente menor

Texto de Marco Fialho

"Estranha forma de vida" pode ser vista no âmbito da obra de Almodóvar como uma obra menor, e digo isso não pela sua duração, mas pelo impacto artístico que ela proporciona. Como o filme possui apenas 30 minutos de duração, a distribuidora O2 Play juntou uma entrevista com o diretor de 50 minutos (que poderia ter pelo menos uns 10 minutos a menos), formando assim uma sessão de 80 minutos. Quero deixar claro, que a ideia de exibir curtas dentro do mercado de cinema uma ótima iniciativa, recentemente, a Embaúba Filmes lançou "Vaga Carne" e "Sete anos em maio" juntos e foi uma excelente estratégia para dar oportunidade a filmes que não chegariam ao mercado tal como ele está estruturado. 

Em "Estranha forma de vida", o diretor espanhol visita o gênero faroeste para trabalhar as velhas questões que povoam o seu universo: o sexo e o amor entre homens e o melodrama. O filme narra a história do reencontro entre dois homens após 25 anos de vidas separadas, e todas as tensões desenvolvidas pelo roteiro advém dessa relação com forte pulsão sexual. Tudo leva a crer, e a entrevista reafirma isso, que esse filme para funcionar plenamente, precisaria de um tempo mais ampliado para poder aprofundar temas e explorar melhor os próprios espaços. 


Almodóvar cria dois protagonistas bem antagônicos, o reservado Xerife Jake (Ethan Hawke) e o impetuoso Silva (Pedro Pascal) para estabelecer uma dicotomia na maneira de ver o mundo, um norte-americano e outro mexicano. Se observarmos bem, o diretor se aproveita do universo do faroeste, e de seus códigos, para mais uma vez reeditar o habitual melodrama que tão bem caracteriza suas obras anteriores. No fundo, a trama se assenta na clássica história de um amor que por questões sociais não pode se consumar, a não ser por um sexo casual. 

O diretor também se utiliza do flashback, outro recurso muito afeito a sua cinematografia, para realizar uma orgia em que os protagonistas iniciam uma caliente cena de sexo. Na entrevista, Almodóvar diz buscar mais a ascendência clássica do que a revisionista para o filme, entretanto, alguns plano de close às vezes se assemelham mais a Leone do que a Hawks, Ford, Walsh ou qualquer outro diretor clássico.     


O título do filme é inspirado na música de abertura, um fado português que fez sucesso com Amália Rodrigues, mas foi resgatada para o universo LGBT por Caetano Veloso cantando em falsete. Essa cena inclusive me remeteu levemente à cena de abertura do clássico filme de Robert Altman "Onde os homens são homens" (1971), só que lá, a música era de Leonard Cohen. A música, segundo o próprio diretor, foi o único elemento fora do contexto da época, e também do gênero western, que ele utilizou, um tipo de licença poética, mas que para mim reafirma a ideia de que a música está a estabelecer as velhas temáticas melodramáticas propulsadas pelo diretor.

Mas é na entrevista que Almodóvar comete o maior deslize ao mencionar diversos títulos de western e não citar o premiado "O segredo de Brokeback Mountain" (2005), clássico inquestionável do cinema faroeste LGBT. Ele até cita o mais recente "Ataque dos cães" (2021), da diretora Jane Campion, mas curiosamente esquece do maior sucesso comercial, que foi até premiado com Oscar de Direção para Ang Lee. Talvez, o maior diferencial do filme de Almodóvar para as outras obras seja mostrar uma maior pegada nas cenas amorosas, enquanto no filme de Ang Lee e de Campion, tudo acontece mais reservadamente, com cenas mais delicadas do que escancaradas. Mas para um diretor do quilate de Almodóvar, claro que se espera muito mais.      


"Estranha forma de amor" teve a colaboração, inclusive financeira, da grife "Saint Laurent". E esse detalhe é importante, pois a marca está presente em todo o figurino do filme. E nesse ponto, preciso ser bem direto: achei o figurino bem decorativo, com aqueles laçarotes de mal gosto pendurado nos pescoços, parecendo um ornamento de festa junina. Enfim, o filme do mestre espanhol passa ao largo das suas obras mais significativas, ainda que aqui ou ali, "Estranha forma de vida" tenha alguns breves momentos, como alguns diálogos travados entre Jake e Silva, mas do ponto de vista visual, tudo fica bem aquém da maioria dos filmes dele.

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